domingo, 13 de outubro de 2013

Religião e comércio na África do séc.XV ao XIX

Numa primeira impressão vemos a África como um continente que sempre foi dominado pelas potências europeias. Mas com as leituras em sala vemos que isto é um mito. A supremacia da Europa na África só se consolidou de fato no começo do séc. XX. Muito em função da superioridade bélica, com a invenção de armas mais potentes como a metralhadora e a granada. A maior força militar, com o uso de armas de fogo, ocorre desde tempos longínquos. Porém estas armas eram de alcance moderado e necessitavam a todo instante de serem recarregadas. O que dificultava um domínio eficaz das forças militares estrangeiras, ainda mais devido ao maior conhecimento dos perigos naturais das populações locais. Fazendo uma analogia com o futebol, mesmo com um time tecnicamente mais fraco, eles estavam jogando em casa e conseguiam manter seus domínios, forçando os invasores a negociar. É o que cita Isabel Castro Henriques no seu livro “O pássaro de mel”:

“Os africanos mantiveram sempre as suas escolhas nas relações comerciais com os europeus, submetendo-os às suas próprias regras religiosas: não só a organização das trocas devia respeitar as normas africanas, provocando a exasperação dos parceiros europeus e a emergência de uma série de “contratempos” determinando as relações entre os dois grupos, mas a própria circulação das mercadorias europeias, obrigava os comerciantes europeus passar pelo filtro do religioso para poder ser integrado nas estruturas sociais africanas.” (Henriques, 2006: 43). 

Ora pois, se o mito da dominação plena europeia citada acima fosse verdade, qual seria a razão destes comerciantes terem que se submeter a procedimentos de religiões que eles consideravam inferior, coisa de bárbaros que não entendiam a fé verdadeira para eles, o cristianismo. Este poder foi bastante limitado pelo simples fato deles terem que jogar com as regras do time da casa. É o que reforça Selma Pantoja no texto “Parentesco, comércio e gênero na confluência de dois universos culturais”, contido no livro “Identidades, memórias e histórias, em terras africanas”:

“Neste texto, o foco das atenções incidirá nas famílias luandenses, ressaltando-se suas origens e as redes de parentesco que permitem observar as relações identitárias nessas famílias, nos séculos XVII e XVIII. Por meio dos laços parentais, podem-se reconstruir certos arranjos familiares e reconhecer as formas pelas quais as famílias africanas assimilavam os homens brancos recém-chegados ao litoral. Também é possível perceber como os recém-chegados europeus agiam frente a sua prole mestiça como o relacionamento que estabeleciam com essas famílias. No geral, eles começavam por se integrar à constituição familiar africana.”
(Pantoja, 2006: 83)

Novamente faço a indagação da razão de povos que se consideravam superiores se integrarem de forma tão íntima com os “primitivos” africanos. Os povos do mais antigo continente davam (e ainda dão) muita importância para as suas linhagens ancestrais, o respeito absoluto era uma maneira de se comunicar eficazmente com os antepassados, muito reverenciados pelas gerações do presente. Por serem de fora e não participarem destas linhagens, os comerciantes recorriam ao casamento para poderem se inserir neste universo. Porém é bom deixar claro que eles nunca eram inseridos totalmente, pois eram apenas uma espécie de “convidados”, justamente por não terem uma linhagem direta de ancestralidade africana. Mas de qualquer maneira virando parente, os negócios eram facilitados. Temos que imaginar os grandes riscos do comércio na época. Usando a imaginação podemos nos dar conta das dificuldades. Um português chega num território estranho e tem que adentrar 500, 700, 1.000 km numa terra estranha, sujeito a todo tipo de adversidades e povos hostis. Ao se inserir nas sociedades locais por meio do matrimônio, conseguirão proteção e pactos que poderiam garantir uma passagem eficaz por meio destes territórios. Que tormentas tortuosas estes portugueses passaram! Longe de serem senhores destes povos, eles estavam ali mais de favor e seguindo as regras impostas para eles. Que mudança de perspectiva do que somos condicionados a pensar.
Mas é importante frisar que os forasteiros eram obrigados a se inserir não somente no contexto do casamento e sim também na dos rituais e das práticas religiosas. Recorro novamente Isabel Castro Henriques para reforçar esta inserção:

Os africanos dão assim provas de tenacidade, obrigando o comércio vindo do exterior a submeter-se aos ritos que caracterizam as operações comerciais organizadas no quadro do comércio interno, que até hoje não pode ser analisado em função do seu volume econômico. A homogeneidade muito profunda das cerimônias rituais limita-se a salientar, por um lado, a importância crescente do comércio, assim como pelo outro, a integração do conjunto dos comerciantes no quadro das práticas religiosas africanas. Em 1885, Silva Porto foi obrigado a participar no sacrifício ritual de um galo, sendo ele e seus homens espargidos com o sangue do animal. Para completar esta cerimônia, a caravana foi, toda, ungida com a “argila branca dos rios”.
(Henriques, 2006: 45)

Um caso bem curioso que vale a pena citar foi a do comerciante luso chamado Silva Porto. Em 1840, encontrava-se em Muatanjamba, quando o líder local morreu. Um grande número de pessoas foram sacrificadas para acompanhar o chefe no além-mundo. Até que alguém teve a ideia de sacrificar também um comerciante, que seria importante para poder manter negócios com o morto. O que seria uma grande honra para ele. Apesar de rogar por sua vida com lágrimas nos olhos, ele não escapou e virou uma espécie de embaixador dos interesses português no além. Por aí temos uma boa visão da crescente importância do comércio com os estrangeiros para os povos locais, o associando cada vez a práticas religiosas. Para nós, ocidentais do século XXI pode parecer banal o sacrifício do comerciante, mas se formos ver sob a ótica local foi uma jogada brilhante. Pois neste mundo mágico (tendo cuidado em não associar a magia com charlatanismo) de conexão frequente com os antepassados foi uma atitude acertada.

Para adentrar mais no universo das religiões africanas, do que eles entendiam como o sagrado. Vou a encontro do texto de Anderson Ribeiro Oliva, “Cosmologias africanas. Os usos e sentidos da “religião” na África”. Ao ter como foco o objetivo de esclarecer as diferenças dos conceitos de religião do ocidental e africano temos pistas valiosas do tanto que o sagrado não é algo estático, as formas que as diferentes culturas entendem o sagrado não cabem na palavra religião da maneira tradicional como nós definimos a palavra. No nosso mundo ocidental nos acostumamos a ver esta manifestação feita num lugar chamado igreja e seguindo um conjunto de dogmas escritos num livro chamado bíblia. O que diverge do modo africano, onde segundo as teorias de René Guénon, as cosmologias funcionam mais em uma base comunal do que individual. O que Mbiti corrobora:

(...) suas convicções são asseguradas pela comunidade; então não importa muito se o indivíduo aceita ou não todas as suas convicções. As cerimônias são executadas principalmente dentro ou por um grupo familiar, por parentes, pela população inteira de uma área ou por aqueles que estejam engajados de uma ocupação em comum.
(Mbiti, 1977; 14)

O que exclui a figura de um padre ou um pastor, aquele que individualmente transmiti o que Deus pensa para as pessoas. Estas diferenças causaram um grande preconceito entre os primeiros estudiosos das cosmologias africanas. Como foi o caso de Guenón, que dizia que para um fenômeno ou prática ser considerado religião deveria possuir três elementos básicos: a moral, o culto ou o dogma. E dizia que hoje somente as três grandes religiões monoteístas: o cristianismo, o judaísmo e o islamismo podiam ser taxadas como religiões de fato. A afirmação é complicada e preconceituosa com as práticas ditas religiosas dos povos “primitivos”. Pois ao criar esta complexidade para este sentimento humano tão presente desde tempos imemoriais, muitos “religares” são relegados a um segundo plano. Para não dizer que seria algo muito anti-científico aplicar métodos tão esquemáticos.

Estes tipos de redução somente contribuíram para o preconceito de que existe uma uniformidade cultural do “africano”. Onde tudo pode ser colocado debaixo do mesmo saco. Ledo engando, as civilizações do continente possuem uma diversidade cultural e religiosa tão grande como qualquer outro. Busco nas palavras de Benjamim Ray um complemento para o que foi colocado.

A equivocada suposição acerca da uniformidade cultural africana foi originada com o comércio de escravos e com os poderes coloniais, que imaginavam a vasta área da África sub-saariana como um único país ocupado pelas mesmas pessoas. A percepção de uniformidade cultural juntou-se a noção sociopolítica de raça, desenvolvida durante o séc. XIX, ignorando as identidades linguísticas, culturais e étnicas que as sociedades africanas tinham desenvolvido por milhares de anos e que continuam a definir suas vidas culturais até os dias de hoje.
(Ray, 2000: 9)

Anderson Ribeiro Oliva finaliza seu texto dizendo que pelo fato de não existir nos moldes ocidentais a distinção entre o profano e o sagrado. Desta maneira as cosmologias africanas não podem ser vistas como um todo uniforme, “mas sim inseridas num grande contexto de diversidades de relações com o sagrado, crenças e práticas físicas e metafísicas. Não somente entre os grupos étnicos- linguísticos, sociedades e regiões, mas dentro destas próprias”.

Amarrando todas as ideias debatidas acima, vemos que os primeiros contatos comerciais entre os europeus e africanos foram marcados pela necessidade e urgência dos primeiros se adequarem e não o contrário como podemos ser levados a pensar. Acentuo o papel dos portugueses (já que os textos se focam nos contatos que este país fez) neste processo, que para conseguir a supremacia do tráfico negreiro, atividade comercial super-rentável na época, se adaptaram com grande eficácia aos costumes dos locais africanos que os proporcionaram grandes dividendos. Claro que deve ser deixado claro que houve um grande etnocentrismo nesta troca cultural, sempre os lusos se vendo como superiores. Porém não deve ser negado que a pequena nação europeia foi bem longe na submissão às regras locais. Para maior conhecimento desta maleabilidade lusa me dirijo para o capítulo I do livro “Casa Grande e Senzala”, Características gerais da colonização portuguesa do Brasil:

“A singular predisposição do português para a colonização híbrida
e escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado
étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África.
Nem intransigentemente de uma nem de outra, mas das duas. A
influência africana fervendo sob a europeia e dando um acre requeime
à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro
correndo por uma grande população brancarana quando não predominando
em regiões ainda hoje de gente escura; o ar da África, um ar
quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura
as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da
Igreja medieval; tirando os ossos ao cristianismo, ao feudalismo, à
arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim,
ao próprio caráter do povo. A Europa reinando mas sem governar;
governando antes a África.”
(Freyre, 1933; 33)

Claro que guardadas as devidas críticas que a obra de Gilberto Freyre tem recebido ultimamente, este é um perfil interessante das razões deles serem mais liberais que outros povos europeus.





domingo, 22 de setembro de 2013

Amor, plástico e barulho


Depois da boa impressão que Pernambuco deixou no festival do ano passado, qualquer um que vier do Estado estará em volta de grande expectativa. Ainda mais com o sucesso de “O som ao redor”, que consolidou Recife como o pólo com a produção mais criativa da atualidade no Brasil. E a diretora estreante em longa-metragem, Renata Pinheiro, não faz feio. Ao retratar o universo do brega de lá atinge um tom quase antropológico. A trama gira em torno de Shelly (Nash Laila), uma dançarina que almeja se tornar cantora, e Jaqueline (Maeve Jinkings), uma cantora já em decadência.

O brega é o bolero brasileiro, poucos estilos musicais vão tão longe nas peripécias do amor. A histórias de aventuras amorosas caiu em cheio no gosto popular, desde muito tempo sendo o estilo favorito dos moradores das periferias das cidades. É esse o ambiente que Renata Pinheiro retrata com maestria em seu filme. O enredo não é original, afinal temos muitos exemplos de roteiros onde uma jovem tenta se inserir no mundo artístico e sofre as consequências deste mundo tão difícil, porém o diferencial aqui é que a periferia é de verdade, diferente de exemplos de obras da Globo, onde tudo é pasteurizado e atrizes que não tem nenhuma aparência de locais são inseridos à força nos papéis, parecendo alienígenas. Como foi o caso da novela "Cheias de Charme", que tem uma trama similar.


Aqui os personagens parecem que acabaram de sair de um show na mais popular das casas noturnas de Recife. O que dá um alto grau de veracidade à tudo, você se sente dentro da película. Mérito para as protagonistas Nash Laila e Maeve Jinkings. A última aliás se consolida cada vez mais na carreira de atriz de cinema, antes trabalhou em “O som ao redor”, onde faz uma mãe de família infeliz que só alcança prazer sexual com eletrodomésticos, em uma interpretação marcante.  

A direção não segue o padrão inovador de outras produções da safra atual de Recife, numa linguagem bem mais acessível. Mas entende-se esta opção, pois uma linguagem complicada num filme que retrata o popular seria um tiro no pé. Mas mesmo assim a mise-en-scène é cativante. Se tivesse um lançamento grande, com muitas salas de exibição à disposição, poderia ser um grande sucesso de público. Mas pena que esta não é a realidade, pois nossos cinemas estão invadidos por produções hollywoodianas e pela Globo Filmes.


Bom saber que Recife vai bem obrigado no cinema e que podemos contar com uma produção criativa constante. “Amor, plástico e barulho” é um filme que merece ser acompanhado, pois tem um grande futuro pela frente. E também a diretora novata, pois demonstra que se tiver incentivo pode chegar longe no mundo cinematográfico.


sábado, 21 de setembro de 2013

Avanti Popolo


O filme tem até a boa intenção de fazer um cinema autoral, o que cai como uma luva para a proposta do Festival de Brasília. Mas peca por transgredir sem ser cativante, fazendo dos 72 minutos uma tortura. Tinha tudo para ser ótimo, afinal um dos símbolos do cinema autoral brasileiro topou ser um dos atores principais, Carlos Reichenbach. O diretor de clássicos nacionais como “Alma Corsária”, “Lilian M.: relatório confidencial” e “Filme Demência”, dá seus adeus à vida (ele morreu em 2012), e ao cinema no primeiro longa-metragem de Michael Wahrmann. Aqui ele faz o papel do pai de André (André Gatti), que na beira da morte fica vendo filmes em Super-8mm com imagens de seu filho desaparecido há 30 anos pelas mão da Ditadura Militar.

A premissa é interessante, dá vontade de ver pela sinopse e pela participação do “Carlão”. Mas o filme é fraco por ser muito ambicioso sem a sustentação necessária. Não tem desenvolvimento dramático nítido, planos extremamente longos e uma lentidão excessiva. Muitas boas obras foram construídas em cima destas características, mas com o diferencial de que eram vigorosos mesmo no seu marasmo. O movimento que ficou conhecido como Cinema Marginal, o que o Carlos Reichenbach foi um dos grandes expoentes, é um bom exemplo. Se valendo destas mesmas categorias dramáticas conseguem transmitir com maestria o espírito do tempo de sua época. Toda uma nova maneira de transgressão na tela, aqui esta ação é vazia.

Tudo começa com o André indo para a casa de seu pai depois de uma briga com a esposa. Por lá fica e se depara com muitos filmes antigos de super-8mm de seu irmão em uma viagem à Rússia. Com estes elementos dá para saber que ele foi perseguido pelo regime militar e que está desaparecido há 30 anos. Porém seu personagem não é trabalhado e tudo relacionado à sua pessoa se torna maçante. Não mais do que o pai (o personagem não tem nome mesmo) que está num estado de avançado de velhice e vive perdendo a bolinha do cachorro no bueiro. Com certeza mesmo num ambiente de um velho nostálgico coisas mais interessantes podem ocorrer.

É o que eu comentei acima, este tipo de exploração é válida e interessante, mas o diretor tem que se tocar que um filme pode ser hermético sem ser incomunicável. É o tipo de trabalho que vai ser somente visto e apreciado somente por um grupo minúsculo de pessoas, pois não convence. Não que eu seja a favor de uma linguagem fácil e acessível, acho isto um porre também. Mas penso que poderia ter um tempero melhor. Volto ao Cinema Marginal para endossar minha opinião, num segundo momento, pelo endurecimento dos militares foram limados do circuito exibidor (que já era pequeno). Mas mesmo em experiências feitas para amigos, se sente algo novo e instigante. É para poucos, mas tem uma chama universal. O que faltou em “Avanti Popolo”, que passa mais a impressão de ser um experimento vazio e que ficará no canto de alguma cinemateca, pois é fechado em si mesmo.


sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Os pobres diabos

O universo do circo é recorrente na história do cinema. Talvez por um sentimento de culpa, afinal com a profusão intensa de novas tecnologias como a televisão, o videogame, a internet e também o cinema, o mundo circense passou por maus bocados. Sendo preterido pelo espetáculo mais intenso que estas maravilhas modernas podem oferecer a um público cada vez mais sedento por novidades. Claro que tem as exceções, como o Cirque de Solei e outros, que se renovaram e ainda atraem um vasto público. Só que este é um universo em que tem muito dinheiro por trás destas produções. O circo que Rosemberg Cariry nos mostra é um decadente, que circula o interior do Ceará. Onde os espetáculos não atraem ninguém e os personagens penam para conseguir o mínimo para comer.

A trama começa quando a trupe decide parar numa cidadezinha chamada Aracati. Neste lugar desolado, o cotidiano deles é desnudado e entramos em contato com pessoas que confundem a vida com a arte. Agindo ao modo picaresco dos anti-heróis da literatura de cordel e do romanceiro popular. Vejo ecos de “Bye, Bye, Brasil” de Cacá Diegues. Vemos uma constante fuga da companhia de Lord Cigano (José Wilker) da modernidade. Aqui a TV é um elemento catalizador desta nova era, pois ninguém vai mais ao tradicional circo, preferem as novelas. Os devaneios do protagonista onde ele amaldiçoa o aparelho eletrônico são brilhantes. Nos levando a crer que a arte circense tem sempre que fugir deste turbilhão em busca de áreas não tocadas pela fúria da modernidade. Outra referência clara à obra de Diegues é o número de canto de Creuza (Silvia Buarque), cantando boleros latinos. Muito semelhante ao que fazia Salomé (Bety Faria).  

A direção é elegante e cheia de tons de cores neutras. Apesar de Rosemberg Cariry ter lançado seu
primeiro longa-metragem em 1993, esta é apenas sua 5ª obra. Onde atinge com primor a descrição dos bastidores do circo. Auxiliado pela maravilhosa fotografia de Petrus Cariry, vemos cenas muito belas daquela feia cidadezinha perdida. O formato de gravação em cinemascope dá uma ótima sensação de grandeza num ambiente intimista. Incrível como cada elemento é bem remanejado para caber com perfeição neste formato.


Apesar dos méritos técnicos, a melhor parte do filme são os atores. Como é bom ver uma equipe sintonizada nos mínimos pormenores, a química é extraordinária. Afinal é muito difícil reunir num só filme talentos como Chico Diaz, Everaldo Pontes, Gero Camilo e Silvia Buarque. Cada um circula pela tela com todos os seus desejos e frustrações. Tendo em comum o amor por esta arte decadente. A conversa final, depois do clímax do incêndio, é um ponto alto do cinema brasileiro deste século. “-Temos que continuar. – Mas quem vai nos assistir?”. E cada um segue caminhando por uma direção dos destroços da grande lona. É como se a mensagem também fosse direcionada ao filme de arte. Quem nestes tempos corridos e frenéticos vai parar para contemplar uma película com estas características? Ainda bem que tem festivais com o o de Brasília para nos oferecer este tipo de espetáculo intimista. 

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Depois da chuva


O filme até tinha uma premissa interessante, as dificuldades e desafios de um adolescente perante um Brasil que estava em processo de redemocratização no turbulento ano de 1984, em Salvador na Bahia. Porém a narrativa recorre a clichês que o deixaram o chato e pseudo-utópico. A namoradinha da escola, o protagonista vencendo a eleição do grêmio estudantil, o punk-rock pesado como um catalizador de sentimentos. Fica a impressão de que se alguns elementos fossem mais bem trabalhados, a película poderia ter tido um resultado "sério", no sentido da consagração da obra. Mas, talvez por falta de capacidade técnica dos diretores Cláudio Marques e Marília Hughes, o lugar comum toma de conta de maneira acachapante. Algo para agradar e não revoltar, revolta até tem, mas num tom tão ingênuo que enche o saco. O resultado final vai na mesma linguagem rala de "As melhores coisas do mundo", trabalho de Laís Bodanzky sobre as aventuras de um jovem na mesma faixa etária numa escola particular  de classe média de São Paulo, mas nos anos 80. Isto é, na metade do filme você já sabe o final. O garoto revoltado com a vida vai passar por alguns ritos de passagens convencionais e os vencerá, pois a vida é dos persistentes. Uma lição de moral bem fraca e explorada à exaustão no cinema tradicional. Um ponto que me chamou a atenção foi o uso de imagens históricas da época da redemocratização, porém aqui novamente os diretores fazem a escolha errada de tentar associá-las à eleição do garoto na escola. Dando um ar meio caricato ao fato. Outro erro foi o centralismo muito grande no protagonista, os outros personagens ficam ralos e sem complexidade. Principalmente o grupo de amigos mais velhos de Caio, onde o garoto entra em contato com o mundo das ideias libertárias e das drogas. Mas você não sabe como ele os conheceu, eles aparecem de supetão e não falam nada com nada acerca da personalidade deles. Passando a impressão que eles são apenas ideias e não pessoas com ideias. Indo para um final meio patético, onde um deles se suicida por não se encaixar na nova realidade. Outro pretexto interessante, mas que vai para a tela num tom exagerado, pois a morte ocorre depois que o personagem pega o microfone num show de punk-rock e começa a xingar a plateia, que o hostiliza. Depois daí o sentido mundo acaba de vez, pois aquela galera era a esperança de revolução para ele. Um conselho, não perca seu dinheiro quando estrear no circuito comercial.

Emmy 2013

Próximo domingo o principal prêmio da tv americana dá as caras novamente. Ano passado o Emmy foi dominado por Homeland, que levou todos os principais prêmios em série dramática (Melhor série, ator, atriz). Este ano a parada está mais complexa, a segunda temporada de Homeland foi bem abaixo da primeira, o que deve fazer com que o prêmio principal migre para outra série, aposto em Mad Men. Apostaria em Breaking Bad também, mas como a 5ª e última temporada foi dividida em duas, ela deve faturar ano que vem. 

Meus palpites são:
Melhor série dramática: Mad Men 
Melhor atriz em série dramática: Elizabeth Moss (Mad Men)
Melhor ator em série dramática: Kevin Spacey (House of Cards)
Melhor atriz coadjuvante em série dramática: Anna Gunn (Breaking Bad)
Melhor ator coadjuvante em série dramática: Mandy Patinkin (Homeland)
Melhor atriz convidada em série dramática: Jane Fonda (The Newsroom)

Melhor ator convidado em série dramática: Harry Hamlin (Mad Men)

domingo, 30 de junho de 2013

Diálogos de Campanella com o cinema americano


O seu estilo não é tão sofisticado como o de Lucrecia Martel, nem possui o realismo visceral de Trapero. Pode-se dizer que seus filmes estão entre os mais acessíveis do cinema argentino atual. Apesar dessa aparente suavidade nos assuntos, nos deparamos com temas que personificam a Argentina de hoje e até de anos passados como os da ditadura militar (1976-1983). Com é o caso do filme O mesmo amor, a mesma chuva (1999), onde é feito um acompanhamento dos fatos históricos desde os anos pré-ditadura até os anos 90 neoliberais do governo Carlos Menem (1989-1999). Passamos pela ditadura liderada por Jorge Rafael Videla, a guerra das Malvinas (1982), o governo pós-ditadura de Raúl Alfonsín (1983-1989).

É assim que podemos observar sutilezas da cultura argentina contemporânea, porém mostrados de uma forma simples e criativa. Tanto que o 1º filme do Novo Cinema Argentino a explodir de fato nos cinemas e festivais brasileiros foi O filho da noiva (2001), com três prêmios em Gramado. Sendo um filme que nos remete à crise econômica dos anos 2000 na figura de um dono de restaurante que vende o estabelecimento para cobrir prejuízos.


Campanella e a crise econômica

Nesta temática serão analisados dois filmes que tratam do assunto de maneira direta. O filho da noiva e Clube da lua (2004). O segundo mais que o primeiro, pois além dos prejuízos econômicos da crise mostra também uma decadência moral materializada no péssimo estado do outrora glorioso clube da vizinhança local. Novamente Ricardo Darín realiza uma parceria memorável com um diretor da nova safra argentina, depois do sólido trabalho com Fabian Bielinsky, participando das quatro últimas películas lançadas por Campanella.

Clube da lua é o seu filme mais consistente, a forma como ele conta nos primeiros minutos do filme o auge do clube em 1959 é uma das mais belas já feitas na Argentina. Numa maneira ao estilo Federico Fellini (1920-1993) ou Ettore Scolla (1931). Somos por ela apresentados ao nascimento de Román no meio de um show de tango no clube, cujo parto é feito pelo cantor do espetáculo. Outro ponto alto da representação da época é quando o mestre de cerimônias fala a frase “este é o tipo de coisa que só acontece no nosso querido clube”. Aí ocorre uma fusão da imagem com o mesmo salão já decadente no ano de 2003.

O clube recebe então uma multa impagável e pela sua situação econômica ruim os membros são tentados a vender o tradicional clube. É quando entra a figura de Alejandro (Daniel Fanego), que consegue um comprador para o estabelecimento que além da compra ofereceria 200 postos de trabalho aos sócios. É muito sutil a maneira de a crise ser representada, sentimos sempre ela pairando no ar, como quando pela amiga carente da filha de Román, pela compra do perfume barato no lugar do Calvin Klein importado de outrora, a viagem do filho Darío (Francisco Fernández) para a Espanha. Respiramos a crise a todo instante através do empobrecimento da população. 

O espírito do tempo

Outra característica marcante do diretor é a maneira como ele representa fatos históricos da Argentina. Além da já citada crise econômica, ele nos põe em contato também com outros acontecimentos da história da segunda metade do século XX na Argentina. Como é o caso de O mesmo amor, a mesma chuva. Acompanhamos a história de Jorge (Ricardo Darín), que vai de 1974 até os anos 90. Deste ponto de partida passamos pela ditadura (1976-1983), o mandato do presidente Alfonsín e depois os anos neoliberais de Carlos Menen. Só que mantendo o mesmo distanciamento dos outros filmes, isto é, não existe uma militância explícita dos personagens, eles sentem os abusos históricos, mas não tem uma postura clara de enfrentamento.

O escritor Jorge nos fornece um material riquíssimo de análise do modo de ser do argentino da época pelo cotidiano da revista onde trabalha. Toda vez que o espírito nacionalista do país aparece, o local de trabalho de alguma maneira o transmite, como foi no caso do entusiasmo pela guerra das Malvinas e a posterior depressão pela derrota. Outro fato marcante é durante o governo Menem, com Jorge se entregando aos impulsos neoliberais ao cobrar de um diretor de teatro dinheiro para fazer uma crítica positiva na revista para ele conseguir um bom público.

Como pano de fundo da história tem o relacionamento conturbado dele com Laura, papel muito bem representado por Soledad Villamil, que dá ao filme uma leveza contagiante.



Diálogo com o cinema americano

Campanella utiliza de elementos “caretas” para contar uma história se o compararmos com outros diretores argentinos. Por exemplo, podemos citar o fato dele raramente usar câmera na mão. Nos diálogos impera a troca de planos apenas entre plano e contra-plano, isto é, quando um fala, a câmera o foca e quando o outro fala, tem um corte seco e a câmera muda para ele. Outro diálogo visível é no uso da música. Bem no estilo do cinema americano tradicional, pouco afeito a inovações técnicas.

Tanto que ele já trabalhou como diretor em várias séries americanas como House M.D, Lei e Ordem e 30 Rock. Este diálogo com a televisão também aconteceu com a de seu país como em séries como em Ventos de águia (2006) e El Hombre de tu vida (2011)


Mas isso não tira seu brilho, um dos mais talentosos da nova geração. Tanto que um das primeiras películas desta safra a explodir no Brasil foi O filho da Noiva. Filme que tem o trunfo de nos encantar a todo instante apesar do clima pesado da crise econômica do começo do século XXI. Mas é essa a grande habilidade do diretor, de temas a uma primeira visão pesados, para aparecer na tela um universo encantador.   

terça-feira, 14 de maio de 2013

Pero de Vaz de Caminha



A dica literária da semana remonta aos primórdios da literatura no Brasil. Alguém já parou para ler na íntegra a carta de Pero de Vaz de Caminha para o rei de Portugal D. Manuel I? É um dos textos mais belos que já li, é uma carta de aproximadamente 14 páginas onde é relatado os acontecimentos iniciais do contato entre os portugueses e os índios do futuro estado da Bahia. Caminha embaraçado pela nudez dos nativos, a boa acolhida que os lusitanos tiveram e as riquezas da terra descoberta, recebem destaque neste documento. Pena que este contato cordial acabou por volta de 1540, quando os portugueses inseriram o Brasil de vez no Sistema Colonial e começou a explosão de exploração e pilhagem de nosso país. A cena onde todos estão dançando e comemorando o contato, numa explosão de amor entre as culturas é tão bela. Pena que ela deixou de ser o parâmetro da invasão portuguesa. O que poucos sabem escrivão foi que o Pero Vaz de Caminha morreu no mesmo ano da carta. Depois de escrita a famosa carta falando dos 10 dias que os portugueses por aqui, ele seguiu para Calecute na Índia, onde morreu vítima de um ataque de muçulmanos em dezembro de 1500.




quarta-feira, 20 de março de 2013

A rápida aparição de Bielinsky


Ele foi um mistério, a sua morte prematura nos deixa a curiosidade do que faria com a sétima arte se ainda estivesse vivo. O domínio que possuía dos elementos cinematográficos é de surpreender até o cinéfilo mais experiente. Fabián Bielinsky, nascido em 1959 em Buenos Aires, morreu de um ataque cardíaco em São Paulo em 2006, enquanto fazia uma seleção de elenco para a gravação de um comercial. Desta brilhante nova geração de diretores argentinos que surgiu na última década, ele era um dos mais inovadores. Com apenas dois filmes no currículo, Nove Rainhas (2000) e A aura (2005), ele entrou na história do cinema argentino. Começou em 1983, com 24 anos, na direção do curta metragem A espera, adaptação de um conto de Jorge Luis Borges. Depois trabalhou na assistência de direção de filmes como O Alambrado (Marco Bechis, 1991) e O segredo dos Andes (Alejandro Azzano, 1999). Voltando a encabeçar uma equipe de filmagens somente aos 41 anos com Nove Rainhas.  

O vigor narrativo de Nove Rainhas

Este é um daqueles filmes de ritmo frenético, a todo instante somos pegos de surpresa em situações que nos deixam boquiabertos devido à mania do diretor de nos “enganar” seguidamente. Quando esperamos um acontecimento, rola algo completamente diferente.

A história começa com o encontro de dois malandros, Marcos (Ricardo Darín) e Juan (Gastón Pauls), que decidem juntar forças para cometer golpes, mas uma oportunidade de algo grande aparece entre eles. A venda de selos antigos conhecidos como Nove Rainhas será a chave para a riqueza de ambos. Ou não? Depois de fazermos um passeio pelo submundo de Buenos Aires, na busca deles de venderem os selos falsificados chegamos a um impasse final, onde o diretor nos revela sua genialidade em contar uma história. Marcos recebe o cheque do valor dos selos e vai para um banco trocá-lo, ao chegar se depara com centenas de pessoas querendo recolher seu dinheiro do local, porém o banco está quebrado. É uma menção à crise econômica que assolou a Argentina no começo do século. Quando achamos que a história chegou ao final somos pegos de surpresa, ficamos sabendo que todos os personagens do golpe do selo eram contratados de Juan para enganar Marcos, numa vingança arquitetada pela irmã do enganado.

No filme, o diretor nos revela um sutil modus vivendi argentino, sentimos uma transpiração constante do que é ser argentino neste novo século. Bielinsky desenvolve esta idéia em entrevista a Folha de São Paulo de 15/06/2001 para a jornalista Silvana Arantes:

"Não quero com esse filme afirmar que sejamos o tempo todo um povo com esse espírito. Mas seguramente ele representa algo de nós. Não somos só isso e nem todos somos assim. Os portenhos talvez correspondam mais a esse retrato. Certamente as pessoas viram que o filme representa um estado de ânimo, uma sensação que às vezes temos de que todos nos mentem, de que o que prevalece é o "salve-se quem puder" e o cinismo absoluto".

O filme foi um êxito comercial na Argentina, levou mais de um milhão de espectadores para as salas de cinema. O projeto só foi possível graças ao prêmio que ele recebeu em 1998 no concurso de novos talentos organizado pela produtora Patagonik Film Group, o que lhe permitiu realizar seu filme de estréia. O sucesso internacional também foi grande, tanto que o roteiro foi vendido para Hollywood, resultando no filme Criminal (2004), que no Brasil recebeu o nome de 171, protagonizado por Diego Luna e John C. Reilly.


Consolidação de um estilo

Depois de cinco anos parado depois que finalizou Nove Rainhas, Bielinsky voltou a dirigir em 2005 o aclamado A aura. O filme obteve 6 prêmios no Festival Condor de Prata, um dos mais importantes da Argentina. Novamente trabalhando com Ricardo Darín, agora como o taxidermista Esteban Espinosa. O protagonista é um epilético fissurado nos detalhes, sempre fantasiando sobre possíveis assaltos a bancos. O diretor retoma alguns elementos narrativos do seu 1º longa-metragem, como brincar com o que real e o que é imaginação, sendo que ambos possuem a mesma categoria, relegando ao telespectador a espera para saber o que realmente acontece ou não. 


Esteban é convidado pelo amigo Sontag (Alejandro Awada) a ir fazer uma caçada em Bariloche, inicialmente ele recusa, mas depois aceita o convite. Mas ele é sempre pontuado pela sua personalidade introspectiva, o que o leva a ser um sujeito distante, como percebemos em sua relação com Sontag, sua mulher e outros personagens do filme. Curiosamente ele só consegue manter algum tipo de relacionamento amistoso com a mulher do Dietrich. Mas voltando à história, eles chegam a Bariloche, mas descobrem que não há mais vagas nos hotéis, são então orientados a irem para um lugar distante onde são alugadas cabanas e armas. O local pertence a Dietrich, e lá moram sua esposa e seu cunhado. Ao saírem para fazer uma caçada, o taxidermista mata por acidente Dietrich e descobre por acaso um plano de assalto para o hotel mais luxuoso da região. Se fazendo passar de cúmplice do morto, ele convence os outros membros do bando a realizar o assalto com a participação dele. Dando início a uma alucinante sequência de acontecimentos que termina da forma mais inesperada.

Cinema autoral

Os recursos da sétima arte usados pelo diretor são de alta inventividade, um exemplo é quando é representada a epilepsia do protagonista. Primeiro escutamos um som agudo, depois a câmera fica lenta e depois vem um clarão branco e no momento seguinte ele acorda e ocorre um zunido. O uso livre e espontâneo destes recursos eleva Bielinsky a um diretor não só de alto nível local como de nível mundial. Ao ser indagado pelo repórter Diego Lerer do El Clarín em 13/05/2005 sobre a complexidade do filme revelou:

“Em Nove Rainhas eu queria ser mais funcional com a história. A trama era tão forte que o estilo não devia molestar. Com A Aura me pareceu que era uma melhor oportunidade para trabalhar sobre algumas idéias postas na cena, de iluminação e de som. E pensar que em todo o filme segue seu ponto de vista e isso te obriga que em certas seqüências, em vez de observá-la em sua totalidade, como em um filme tradicional, tenha que permanecer no lugar de Darín.”

sexta-feira, 8 de março de 2013

A caverna dos sonhos esquecidos


A tecnologia 3D no cinema ainda é uma técnica cara, o que significa risco zero para os produtores cada vez mais caretas de Hollywood. Sendo assim temos filmes que tem um visual espetacular, mas histórias sem consistência. O caso clássico é Avatar, a maior bilheteria de todos os tempos no fundo é uma mistura de Pocahontas com seres de outro planeta com tecnologia inferior que a nossa. Mas as possibilidades do 3D são tantas que diretores de respeito tem começado a se aventurar nela com desenvoltura, por exemplo, Martin Scorsese com Hugo Cabret e Wim Wenders com Pina. O filme em questão desta crítica foi feito por outro mestre do cinema, Werner Herzog. Que com A caverna dos sonhos esquecidos faz seu debut nesta tecnologia.

O alemão decidiu utilizar a técnica ao conseguir do ministro francês rara permissão para registrar o interior da Caverna Chauvet, que foi descoberta por acaso na França em 1994 por três espeleólogos em busca de cavernas na região. Ela foi soterrada há cerca de 20 mil anos. O que manteve intacto o universo de homens da caverna que começaram a usá-la como espaço de pintura há cerca de 32 mil anos, sendo as mais antigas já encontradas. A qualidade das pinturas é algo extraordinário, como se naquele espaço estivesse sendo criado o espírito do homem moderno.

A escolha de Herzog foi acertada, como a maior parte da parede é inclinada, temos a profundidade exata das pinturas. É incrível como somos levados para o interior do espaço com um realismo que nos deixa em transe, é como se de fato estivéssemos lá dentro. A força das imagens e a narração em off do diretor nos dão uma noção exata do tanto que o local é especial. Pois segundo especialistas não era usada como casa e sim como um tipo de templo. Onde as pessoas se reuniam no escuro para ver as pinturas, que com o jogo de luz das fogueiras, dava uma sensação de movimento das figuras, o que Herzog define como um proto-cinema. São estes tipos de comentários que dão força ao documentário, há todo instante somos apresentados a teorias (às vezes malucas) do que motivava estes primeiros homo-sapiens a pintar as paredes da caverna. Assim somos levados à profunda erudição do diretor, que fez tantos clássicos da 7ª arte, Aguirre, a cólera dos deuses, Fitzcarraldo e O enigma de Kaspar Hauser, só para citar alguns deles.

Vendo este direcionamento dado ao 3D me dei conta do tanto que esta tecnologia pode ser usada para outras áreas que não o cinema. A educação iria ser revolucionada com a sua  aplicação, fico imaginando uma aula de história com as ruínas do Egito e da Grécia antiga, em vez dos chatos slides e fotos de livros, os alunos teriam sua atenção captada pela maravilha que é o mundo em 3D. Talvez um dia esta energia possa ser redirecionada para esta área.

No término da sessão senti algo que há muito não sentia no cinema, uma conexão com a pequenez da nossa noção de tempo. Os 5 mil anos que a caverna foi sendo continuamente pintada são inimagináveis para nossa percepção moderna do tempo, onde as coisas passam tão rápidas que um tempo histórico como a Revolução Francesa, que ocorreu há “apenas” 224 anos, parece uma eternidade para nós. Isso é o grande cinema, aquele que te faz imaginar e refletir sobre o que é nossa passagem tão curta por este planeta. E Herzog, com sua maestria típica de cineasta contestador, nos leva a essa reflexão com louvor. Vale ir ao cinema ver A caverna dos sonhos esquecidos, pois é um grande acontecimento da 7ª arte de nosso tempo. A união perfeita entre o espetáculo e a reflexão, infelizmente muito pouco usada no cinema atual. 

sexta-feira, 1 de março de 2013

Argo

Argo foi o arrasa quarteirão da temporada. Ganhou os principais prêmios do ano, incluindo o Melhor Filme do Oscar e do Globo de Ouro. A história se passa nos traumáticos dias em que os funcionários da embaixada americana no Irã ficaram seqüestrados por 444 dias, logo após a eclosão da Revolução Islamita que tomou o poder em 1979. O caso mexeu tanto com os EUA que muitos analistas apontam este desgaste como uma das principais razões da não reeleição de Jimmy Carter na eleição de 80. Porém o foco está não na embaixada, e sim em 6 funcionários que conseguiram escapar durante o começo do tumulto e se refugiam na casa do embaixador do Canadá. É aí que entra o agente especial da CIA, Tony Mendez. Interpretado por Ben Affleck, que é diretor, produtor e protagonista do filme. Durante reuniões na agência de espionagem tem um insight de se passar por produtor de um filme de ficção científica em busca de locações no Irã, arrumando assim a desculpa perfeita para poder retirar os 6 americanos de lá. 


Este é o 3º longa que Affleck dirige, os outros foram Medo da verdade (2007) e Atração Perigosa (2010). Trabalhos que passariam despercebidamente se o diretor não fosse o ator famoso que é. A película de 2010 tem um ritmo super previsível, acabando no final feliz tão comum ao que Hollywood produz. O tipo de obra que te conta tanto, com tantas imagens frenéticas, que não te dá espaço para aquele devaneio esclarecedor que temos durante uma obra-prima. Por isso que na minha opinião achei exagerado aquele fuzuê todo em cima do fato dele não ter sido indicado na categoria de Melhor Diretor. Claro que a atual geração não é lá essas coisas, mas ele não tem cacife para ficar “chatiadinho” com a Academia, demonstrado isso publicamente no discurso do recebimento do prêmio que ganhou pela direção no Globo de Ouro. 

Voltando ao que interessa, podemos resumir o grande vencedor do Oscar em uma grande “patriotada”. Os americanos são retratados apenas como vítimas, sem nenhuma reflexão séria das circunstâncias históricas do que foi aquele agulheiro que eles se meteram. A única sinalização foi uma animação nas primeiras cenas do filme, mas que apenas informa, não induz ao raciocínio. Os iranianos são retratados como fanáticos religiosos sanguinários, o que em parte é verdade, mas o filme não tem nenhum personagem do lado de Teerã para balancear as motivações que estavam enraizadas naquele povo para fazer o que fez. O que daria uma riqueza de interpretações, mas este não é o objetivo do grande cinema americano. Por isso que fiquei curioso quando li que o governo dos Aiatolás pretende fazer uma película com o mesmo tema em resposta, só que agora na visão deles. Deve virar uma porcaria ideológica, mas só de ver o que eles pensavam sobre aquilo, vai valer o ingresso (ou o download da internet). 

Este trabalho de Affleck não chega a ser ruim, mas possui uma condução tão careta que às vezes irrita. A cartilha tá toda lá: o uso emocional da música, o protagonista que tem que se focar no trabalho para dá um tempo nas preocupações na família, o plano-contra plano nos diálogos, o heroísmo das instituições estadunidenses. O que foi aquela louvação à CIA? No final quando Tony Mendez conversa com alguém do governo, que o mostra o relatório da CIA de 1 ano antes dos conflitos no Irã, onde estava escrito que não havia nenhuma possibilidade do governo do Xá Mohammad Reza Pahlavi cair. Aí Mendez responde que todo mundo erra. Sem nenhum comentário malicioso sobre a burrice da inteligência na agência. Se fosse Stanley Kubrick dirigindo seria outra história, poucos dramas políticos terão diálogos mais inteligentes que Dr. Fantástico. 

Apesar dos pesares, o filme tem bons momentos. A reconstituição da época (na parte técnica), está impecável. Os atores John Goodman como John Chambers e Alan Arkin como Lester Siegel fazem uma dupla adorável de produtores que ajudam na farsa do filme. Através deles entramos em contato com os bastidores do lançamento de um filme, o que rende boas situações. A tensão quando Mendez simplesmente ignora ordens superiores e decide seguir com o plano de retirar os seis pelo aeroporto dá um brilho ao filme, mas fica meio apelativo quando ele diz para seu chefe que vai fazer isso pelos americanos, que eles estão sob sua responsabilidade. Contudo velhos clichês vem à tona naqueles momentos finais onde o plano vai por água abaixo e eles estão entrando no avião. Naquele clímax tão tradicional que você sabe que eles vão escapar. Pois se tem tragédia no meio, o Oscar também foge. No final das contas mais um filme feito ganhar o Oscar que não está à altura dos tempos áureos da premiação. Vai ser mais um trabalho razoável a ganhar o Oscar, na mesma categoria de outros medianos laureados com o prêmio máximo, como Quem que ser um milionário? e Crash – No Limite.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

The Rocky Horror Picture Show




The Rocky Horror Picture Show é um daqueles filmes à frente de seu tempo. Não espere achar este radicalismo temático no filme musical tradicional dos grandes estúdios. Enquanto eles primam pelo belo e impecável, aqui o foco é outro, contra-cultura na veia. Tanto que no seu lançamento em 1975 passou despercebido pelo público e pela crítica. Sendo aos poucos elevado à merecida categoria de obra-prima. São vários os elementos que o colocaram neste patamar.  Desde a escolha acertada de atores desconhecidos, porém super competentes. Susan Sarandon, hoje reconhecida como uma grande atriz, ainda não tinha dado um grande passo em sua carreira. Barry Bostowick, que depois teve uma carreira irregular, com mais foco na televisão. Desde a mais radical de todas, a escolha de um travesti alienígena como protagonista, interpretado brilhantemente por Tim Curry. Cito também a deliciosa homenagem aos chamados Filmes B, películas que tinham um baixo orçamento. Mas que pela menor pressão, tinham uma liberdade temática bem maior do que os do mainstream. Da união de tudo isso, com a mão certeira do diretor Jim Sharman, surgiu algo estranho e fascinante.  

Os personagens Janet Weiss e Brad Majors são um típico casal americano da época, com todas as suas caretices. Tanto que o filme começa num casamento de amigos, onde no final o apaixonado Brad pede Janet em casamento. A normalidade termina aí. Ao visitar um antigo professor, o casal pega um temporal na estrada e tem um pneu furado. Aí começa o calvário deles. Ao pedirem para usarem o telefone de um antigo castelo, entram em contato com uma realidade assustadora, psicodélica e depravada sexualmente. Como assim depravada sexualmente? Vocês devem ter se perguntado. É que os personagens são tão loucos, que nos seus delírios cometem todo tipo de perversidade sexual. Ao começar pelo Dr. Frank-N-Furter, interpretado por Tim Curry, que faz uma interpretação digna dos grandes atores da história. Ele faz o papel de um cientista louco alienígena com roupas fetichistas. Ao ser apresentado ao casal, os mostra sua última criação, Rocky. Um ser criado aos moldes do monstro Frankstein, só que neste caso para satisfazer sexualmente  o seu ciumento criador. 

É aí que entra outra carta na manga do filme. A sátira aos filmes B de terror, que gerou clássicos vistos até hoje. Tanto que os personagens são uma corruptela de vários personagens que são figuras carimbadas deste tipo de filme. Como o cientista louco, o mordomo corcunda e o castelo mal – assombrado. Só que desta vez com uma pitada de erotismo e lisergia. O filme foi dirigido por Jim Sharman, que revelou em algumas entrevistas que usou estas referências de maneira consciente, pois era uma maneira de  unir duas coisas que o fascinavam, o terror e a contra-cultura dos 70. Esta bem presente na trama do filme, aliás em quais filmes podemos ver um protagonista travesti querendo perverter sexualmente seus “convidados”. Realmente é um filme que capta muito bem o espíto da época, hoje em dia este tipo de temática é bem difícil no careta começo do século XXI. Ainda mais em tempos de crise econômica, onde os produtores querem se arriscar cada vez menos.  


É justamente esta mistura louca e desenfreada de elementos dispersos que dá o charme ao filme e o colocou na posição de filme cult que ocupa hoje. Tanto que muitas pessoas que não são fãs do gênero musical o adoram. Muitos enfeitiçados pela trilha sonora, que adquiriu vida própria. Tanto que uma obra distante anos-luz da proposta de Rocky Horror a faz uma homenagem. A série de tv Glee fez uma releitura de suas canções em um dos números musicais que os personagens tem que criar na trama da série. 


Ver The Rocky Horror Picture Show é se deparar com algo ousado. Um bom filme é aquele que você se lembra muito tempo depois de o ver. Muitas vezes me pego sorrindo sozinho do humor non-sense de Dr. Frank-N-Furter. Na metamorfose que o casal careta sofre na casa, inclusive com homossexualismo no meio. Nos loucos personagens secundários, que parecem saídos de uma boite de algum inferninho que vemos nas grandes cidades. É algo que ainda será visto no futuro, sem perder o frescor dos anos 70. 

A glória



Aos 15 minutos da prorrogação, no último lance das quartas de finais da Copa de 2010 aconteceu um daqueles fatos inimagináveis no mundo do futebol, uma daquelas aparições do sobrenatural de Almeida, que Nelson Rodrigues sempre citava. Asamoah Gyan teve a chance de entrar no hall dos grandes jogadores de todos os tempos, mas um pênalti perdido o tirou dali. Aconteceu uma falta marota pela direita, daquelas determinantes para mexer num placar no apagar das luzes de um jogo. Depois de um bate-rebate na área, a bola do jogo sobrou caprichosamente na cabeça de Dominic Adiyiah, quando Suarez colocou as duas mãos na bola, evitando o endereço certo. O jogo entre a seleção do Uruguai e de Gana parou. O juiz olhou para o bandeirinha, que olhou para o árbitro reserva e todos, sem pestanejar, indicaram a penalidade máxima e o cartão vermelho para o infrator que cometeu o pênalti mais escandaloso de todos os tempos. Ao colocar a bola na marca do pênalti, todos olhavam com confiança para Gyan, mesmo o jogo empatando Gana foi melhor no jogo, merecia a vitória e ele era a estrela do time. Apesar de a Copa ser na África todas as equipes do continente já tinham sido eliminadas. Do outro lado tinha o Uruguai, bi-campeão mundial, mas que desde 70 não chegava numa semi-final. Talvez o filme com este enredo de escola grandiosa, mas decadente, passou na cabeça de Suaréz e ele colocou a mão descaradamente na bola para evitar o destino certo do gol. Outro título sagrado que o africano iria obter era o de maior artilheiro africano em Copas, se juntando a Roger Milla, um mito do esporte vindo de Camarões com 5 gols. Ele se dirigia à bola com esta confiança de quem se sentia já como um herói nacional, pois se ele tivesse convertido a penalidade máxima, Gana seria a primeira seleção do continente a chegar nesta fase da competição mais importante do futebol e ele seria uma lenda viva. Apesar de ter produzido times memoráveis como a Nigéria de 94, o próprio Camarões de 90 de Milla, nunca havia chegado além das quartas. Quando Gyan chutou a penalidade máxima por cima da trave todos já sabiam que Gana perderia a batalha. A celeste se agigantou e conquistou a vaga na disputa por pênaltis com direito à cavadinha de Loco Abreu na última cobrança. A história foi ingrata com Gyan, ou ele foi ingrato com ela por não ter desfrutado da incrível oportunidade que foi colocada na sua frente? Realmente eu nunca me esquecerei da alegria de Suárez ao ver o seu sacrifício funcionando...