segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

O reconhecimento tardio de Humberto Mauro


Humberto Mauro foi um dos diretores mais fascinantes que o cinema brasileiro teve. Glauber Rocha fez uma definição muito boa do que representou o diretor. Em entrevista ao documentário Mauro, Humberto de David Neves diz que o mineiro é o fundador do estilo cinematográfico brasileiro. Sendo o grande percursor do Cinema Novo e com uma importância cultural à altura de um Heitor Villa-Lobos, um Guimarães Rosa ou um Portinari. Apesar de algumas opiniões meio tresloucadas, Glauber tinha razão em colocá-lo neste patamar. O mais incrível é que mesmo com todas estas qualidades ele era um autêntico desconhecido da maior parte do público de sua época. Sua carreira foi prejudicada por um preconceito que até hoje perdura contra o filme nacional, classificado como inferior e popularesco. Além deste pesar, ainda sofreu bastante com a até hoje problemática distribuição das obras nacionais num mercado inundado por filmes estrangeiros. Somente na década de 60 passou a ser mais respeitado com a redescoberta de seus filmes que sobraram, infelizmente alguns se foram para sempre dado o descaso com a preservação das primeiras gerações do cinema nacional. Pesquisadores, críticos e cineastas de peso fizeram este resgate. Nomes como Alex Viany, David Neves e principalmente Paulo Emilio Salles Gomes o deram o reconhecimento devido.
A carreira de Mauro começou em 1925 com o curta Valadião, o cratera. Filmado com uma câmera Pathé-baby 9,5 mm foi o primeiro contato com a arte de filmar. Seu interesse pela sétima arte começou ao se envolver com eletrônicos, principalmente o rádio. Depois se interessou pela fotografia. Daí para o cinema foi um pulo. Seu grande incentivador e mestre nesta fase inicial foi Pedro Comello. Imigrante italiano, chegou em Cataguases em 1914 e tinha um estúdio de fotografia. A amizade foi instantânea e prolífica. Estava iniciado o que ficou conhecido como o Ciclo de Cataguases.
Depois do curta citado, eles tentaram fazer um filme que se chamaria Os três irmãos. Com direção de Comello, o projeto naufragou por conta da dificuldade em materializar o projeto. Daí Humberto Mauro dirigiu seu primeiro longa. Na primavera da vida foi considerado um êxito pois o filme de baixo orçamento se pagou somente com exibições em Cataguases e região. Protagonizado por Eva Nill, nome artístico de Eva Comello (filha de Pedro), e Bruno Mauro (irmão do diretor) foi uma experiência que consolidou a escolha dele ser diretor. A trama é basicamente Eva Nill interpretando uma moça simples, filha de um vigia fiscal, que vive romance com um engenheiro e um contrabandista, atrapalhando o trabalho e os planos de seu pai. Infelizmente o filme não se conservou para as futuras gerações. Desta primeira fase, tanto esse quanto Valadião, o cratera se perderam para sempre. A noção de preservação dos primeiros filmes no Brasil é um processo que veio somente depois. Processo que se consolidou somente com a criação das cinematecas.
Com o interesse cada vez maior dos dois amigos, a brincadeira começou a ganhar ares mais profissionais. A criação da Phebo Sul America Film foi um marco. Com o apoio de personalidades locais que toparam financiar o projeto, os filmes começaram a ficar mais caros e bem realizados. Daí veio Thesouro Perdido em 1927. No livro História do Cinema Brasileiro de Fernão Ramos, em capítulo dedicado ao ciclo de Cataguases diz sobre esta parceria que:
“O projeto é abandonado e, em seguida, fundam a Phebo Sul America Film, que conta com o investimento de Homero Cortes Domingues, dono das Casas Carcacenas, e Agenor de Barros, homem do café e da Agência Buick. O primeiro filme da Phebo, projeto mais realista, é Na primavera da vida (1926), história e direção de Humberto com o pseudônimo de Reynaldo Mazzei. A essa altura já havia aprendido cinegrafia, roteiro e direção, tanto através dos ensinamentos do mestre Comello, quanto de seu esforço de autodidata.”
(RAMOS, 1987. P. 85)   

Antes de entrar no filme em si é importante falar sobre a crise que aconteceu entre Humberto Mauro e Eva Nill. Por conta de um gênio forte bateu de frente com o diretor e saiu do projeto no começo das filmagens e foi substituída por Bebe Mauro, esposa do diretor. Isto aconteceu pois ocorreu uma grande dificuldade em arrumar uma substituta para Eva. O cinema era uma arte que não possuía a melhor das reputações e desde os tempos do teatro, a atriz era vista pela sociedade como um tipo de mulher fácil. Olhando as fotos de Eva que chegaram até os dias de hoje vemos uma mulher misteriosa e com uma beleza arrebatadora. Paulo Emilio Salles Gomes fez uma boa definição dos efeitos do fenômeno Eva Nill sobre as plateias da época.
A tese de doutorado que Paulo Emilio Salles Gomes defendeu e que virou livro é uma referência obrigatória para quem quer adentrar no universo de Mauro. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte conta com uma riqueza incrível de detalhes não só histórias do diretor, mas também de todo o espírito do tempo da época. O foco é somente na primeira fase, no que hoje é conhecido como Ciclo de Cataguases. Ele vai desde a história dos pais de Mauro até a realização de Sangue Mineiro (1929), o último filme do ciclo. Os personagens do livro são encantadores. Se hoje fazer cinema no Brasil é um calvário, imagine naquela época. Mas desta dificuldade surgiu um cenário único no contexto da evolução do cinema mundial, realizações altamente pessoais numa época que a sétima arte ainda estava se consolidando.
Daí a importância do estudo de Paulo Emilio, até então Mauro foi uma figura meio esquecida dos círculos cinematográficos. Apesar de alguns críticos falarem bem de seus filmes, a maioria esmagadora era contra. Todo tipo de acusações que além de revelar uma crítica de cinema em jornais ainda era feita por pessoas que não tinham a sensibilidade adequada. A perseguição era tanta que Mauro recebeu o jocoso apelido de Freud de Cascadura do jornalista Henrique de Pongetti na ocasião do lançamento de Ganga Bruta no Rio de Janeiro numa crítica para o periódico O Globo em 1933. O comentário foi por conta de algumas referências à psicanálise feitas na película.
“O último filme feito made in Cascadura, que vimos na Cinelândia, tinha dois mil metros de celuloide, esticando uma bobagem que caberia nas costas de um selo. O público riu do drama até onde pode e, quando não podia mais, foi chorar pelo dinheiro da entrada na cama, que é lugar quente… Pois bem: quando se referiam ao insucesso do filme em conversas com os seus incorrigíveis perpetradores, eles diziam com um sorriso de vitória: “O público não entendeu que o drama era freudiano… O nosso público nem sabe que é Freud!...”
(Pongetti, Henrique. O Globo. Rio de Janeiro, 2 de outubro de 1933) 
A História mostrou o tanto que os críticos estavam errados. O cinema americano sempre foi muito forte no Brasil, principalmente depois que começou a 1ª Guerra Mundial (1914-1918). Com a guerra na Europa a produção teve uma queda acentuada, vazio que foi preenchido pelos filmes produzidos em sua maioria em um lugar que viria a se tornar sinônimo do espetáculo cinematográfico, Hollywood era o nome de uma cidade da Califórnia que teve seu potencial visto por D. W. Griffith. Daí o fascínio de críticos com o cinema dos EUA, mas que no fundo era um tipo de complexo de vira-latas em que para o filme ser bom tinha que seguir as regras do que vem de fora.
Cinearte
Apesar de ter tido uma grande importância como a conexão entre a produção brasileira que praticamente não se comunicava além de sua região. A revista Cinearte, que circulou de 1926 a 1942, foi uma grande propagadora da mentalidade de que o filme nacional deveria passar longe de temas rurais, devendo retratar o glamour da cidade grande. O que foi um baque para o cataguasense, pois ele tinha claramente um grande apreço por temas interioranos. Os principais nomes da revista eram Pedro Lima e Adhemar Gonzaga. Suas ideias hoje beiram à loucura para os padrões atuais. Além do gosto pela alta sociedade, eram xenófobos e racistas. Segue abaixo a crítica feita em 1927 para a edição de número 91.
Começava o filme expondo uma porção de pretinhos tomando banhos
ou raspando as canelas numa praia do Recife. Depois, apresentava o
centro comercial da cidade, inteiramente às moscas, vazio, ostentando
apenas belos edifícios. E o letreiro fazia então uma pilheria a esse
respeito. Em seguida, surgiam outros aspectos apreciáveis e vinha então
o Rio de Janeiro.

(THE GIRL FROM RIO. Cinearte, v.2, n.91, p.33, 23 nov. 1927)

Apesar destes desvios ideológicos, a importância da revista para o cinema nacional foi muito grande. Lima e Gonzava foram grandes conselheiros e incentivadores da produção nacional. Nem toda ela, a aversão que eles tinham pelos filmes naturais (documentários) era notória. Para a revista o importante eram os filmes de ficção, chamados na época de pousados. Apesar de podarem o talento de Mauro foram também grandes incentivadores, dando a ele a medalha de melhor filme brasileiro de 1927. E não podemos esquecer que foi Adhemar Gonzaga que convidou o mineiro para trabalhar no Rio de Janeiro no começo da década de 30 no estúdio que havia acabado de inaugurar, a Cinédia.
Um mineiro na capital
Esta foi uma importante fase de sua carreira. A mudança para a capital o trouxe um pouco de estabilidade financeira e a possibilidade de trabalhar com sua grande paixão com mais recursos e estrutura. Lá realiza como diretor Lábios sem beijos (1930), A voz do carnaval (1933) e o clássico Ganga Bruta (1933). Além de várias outras contribuições em outras áreas como direção de fotografia e iluminação. Depois de desentendimento com Gonzaga vai trabalhar no estúdio de sua amiga e atriz de filmes anteriores Carmen Santos. No Brasil Vita Filmes faz dois filmes: Favela dos meus amores (1935) e Cidade Mulher (1936). Obras que infelizmente se perderam num incêndio, sendo inacessíveis para as gerações atuais.
1937 inicia uma nova fase em sua carreira. Com o apoio de Edgar Roquete-Pinto começa a trabalhar no recém fundado Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). Onde volta para sua essência de homem do campo dirigindo documentários de todos os tipos com foco na educação do povo. Obras-primas como a série Brasilianas mostram costumes e músicas de pessoas do interior do país.

Última direção
Em 1952 realiza aquele que será seu último filme.  O canto da saudade é gravado no estúdio que cria em Vargem Grande, pequena cidade mineira onde havia nascido e morava antes de ir para Cataguases. Com mais idade e tendo controle de sua obra vai mostrar as coisas que gostava tanto. A natureza e a cultura do interior sempre tiveram alta consideração por Mauro. Chegando até a dizer em algumas entrevistas que o cinema era como a cachoeira. É um grande filme, cenas antológicas como um sonho e o próprio Mauro como ator dão ao filme um alto grau artístico. O livro Humberto Mauro – Sua vida/ sua arte/ sua trajetória no cinema com a coordenação editorial de Alex Viany, lançado em 1978. Traz uma interessante matéria que Rogério Sganzerla escreveu para o Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo em 6 de fevereiro de 1965.
“A câmera não coopera na interpretação dos atores; a montagem possui uma única função, provocar um humor regional-mineiro; não há intrigas articuladas. Ao contrário de Ganga Bruta, não possui ritmo compassado: é uma fita que flui por si mesma, como no documentário ou jornal de atualidades. Um filme que se cria. Talvez por ser o displicente e superior canto de cisne de Mauro na longa-metragem.”
(VIANY. 1978. P. 86)

Legado
Num país que sofre de esquecimento crônico como é o caso do Brasil a obra de Humberto Mauro ainda não tem a abrangência de estudos que um homem da sua altura merece. A situação já foi pior, porém o resgate da obra do resgate do mineiro deu uma arrefecida ultimamente. Sem a mesma força de obras lançadas nos anos 70 e 80. Como é o caso do livro de Paulo Emilio e obras de coletânea reunindo matérias sobre ele. Para não ser injusto, existe uma boa obra atual sobre a fase de Mauro quando fez obras sob encomenda do governo Getúlio Vargas. O pesquisador da Universidade de São Paulo, Eduardo Morettin, escreveu a respeito da trajetória da produção dos filmes Descobrimento do Brasil e Os Bandeirantes, produções feitas sob encomenda do governo Getúlio Vargas. Por intermédio dos filmes ele mergulha nas dificuldades da produção brasileira de filmes nas décadas de 1930 e 1940, a possível influência política e ideológica do pensamento hegemônico e seus efeitos sobre o diretor. Também vai para a importância do cinema com temas históricos para consolidar a história oficial do Brasil e de São Paulo.

Mauro ficou para a História como um pioneiro que conseguiu transmitir seus sentimentos em uma arte que apenas estava engatinhando no Brasil e no mundo. Sua originalidade durou mais que os ataques que sofreu. O que ficou foi a ideia de um talento extraordinário que ainda consegue destilar sua inteligência para as plateias de hoje. Não um Freud de Cascadura. E sim, um dos grandes interpretes da alma brasileira. Ele morre em 1983, mas sua obra vai perdurar e influenciará muitos futuros estudos. 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Nova Hollywood ou quando o cinema americano foi mais longe do que nunca



Poucas vezes o cinema feito nos Estados Unidos foi tão ousado e inovador quanto o período que vai de meados de 1967 até o começo dos anos 80. O movimento que a imprensa classificou de Nova Hollywood foi o celeiro de talentos como Brian de Palma, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Hal Ashby, Michael Cimino e tantos outros. Uma das características mais marcantes desta geração foi uma capacidade extraordinária de conexão com o seu tempo histórico. Enquanto o velho sistema de estúdio de Hollywood estava ruindo com fracassos monumentais de bilheteria como foi o caso de Cleópatra de 1963, uma nova geração que bailava no tom da contracultura não se via identificada naquele tom insosso que os grandes estúdios engessaram nas películas. Comportamentos hoje considerados normais não eram mostrados, um tipo de tabu que não estava conectado com os anseios da geração de 60.
Se diz que as grandes oportunidades estão nos momentos de crise e ruínas. Foi justamente neste cenário de terra arrasada que estes jovens diretores (muitos recém-saídos das faculdades de cinema que então estavam se inserindo com mais consistência no mundo acadêmico) entraram no mercado de filmes como representantes autênticos do que pensava este novo cidadão americano. Suas bases teóricas estavam calcadas mais nas novas experiências europeias como a Nouvelle Vague e o Neorrealismo italiano que a linguagem clássica do cinema americano. Não que isso signifique uma recusa completa aos cânones americanos, como mostram as constantes referências a mestres como John Ford, Howard Hawks e John Huston.
Há uma passagem sensacional no livro Como a geração do sexo, drogas e rock’n’roll salvou Hollywood do jornalista Peter Biskind que mostra os percalços desta nova geração em inserir suas ideias num ambiente afundado em velhos conceitos. Biskind relata como Warren Beatty teve que implorar para Jack Warner (chefão do Estúdio Warner) para que o hoje clássico Bonnie & Clyde – uma rajada de balas fosse financiado, testemunhas dizem que o ator teve até que se ajoelhar. No fim o magnata do cinema pensou, com tantos problemas financeiros e as pessoas cada vez menos indo para o cinema. Por que não fazer um filme com baixo orçamento? Com baixo risco e com um ator que estava principiando uma bem-sucedida carreira protagonizando e produzindo. Pelo menos o dinheiro investido seria recuperado. Não sabia ele que uma revolução estava começando.
Bonnie & Clyde – uma rajada de balas é um filme muito fora dos padrões do momento. Baseado na vida de um casal fora da lei que desafiou a polícia nos anos 20 foi uma analogia sensacional com os sentimentos dos jovens da época. Os protagonistas fogem pelos EUA roubando bancos numa busca que vai além do dinheiro. Como se eles não se encaixassem em lugar nenhum. Seus inimigos são as pessoas integradas ao sistema. Instituições como a polícia e os bancos não podiam aceitar que dois jovens pudessem levar uma vida assim e sair impunes. A reação brutal não tarda a chegar e eles são mortos numa cena, que apesar da violência da rajada de balas que recebem, é de uma beleza imensa.
Para surpresa de todos, até para o próprio Warren Beatty, o filme foi um sucesso de público e crítica. Cinemas lotados mostravam a disposição do público em filmes com temáticas mais pesadas que os agridoces filme médios americanos. Daí é importante deixar visível o importante papel da crítica em validar este novo movimento. Pauline Kael (1919-2001) foi uma crítica que trabalhou no The New York Times de 1968 a 1991. Seu estilo de escrita influenciou toda uma geração de críticos. Às vezes achamos que se um filme é bom por si só ele irá conseguir seu espaço. O cinema não é algo matemático e muitas vezes há obras que apesar de serem muito boas são muito à frente do seu tempo e não conseguem o reconhecimento merecido. Bonnie & Clyde teve a sorte de ser reconhecido por alguém do poder de influência de Kael. O que abriu muitas portas para esta geração.
Easy Rider: uma geração sobre duas rodas
Com o sucesso desta temática mais pesada nos leva ao passo seguinte: Easy Rider. Dirigido por Denis Hopper, ator de westerns que quis virar também diretor, é uma representação magnífica do que é ser um jovem sob a influência destes anos loucos. Dois caras com seus 20 e poucos anos, que não conseguiram se encaixar no sistema viajam pelos Estados Unidos em motos em busca de uma essência perdida nos grandes centros urbanos. A música da abertura não podia ser outra, a canção Born to the wild de Steppenwolf é um espelho dos anseios de toda uma geração. A América cada vez estava aceitando este novo estilo de filmar e da escolha insólita nos temas.
Com a contracultura cada vez mais ditando as cartas. Passamos a ver drogas, delinquência juvenil com uma análise diferente do paternalismo de antes. Até gêneros canônicos passarem a ser desconstruídos, até o western passou a ter uma linha menos clara entre os mocinhos e os bandidos. 

Voltando ao livro de Biskind, ele faz um recorte temporal preciso de quando começou e terminou. O filme citado acima foi o precursor em 1967 até Raging Bull (Touro Indomável) de Martin Scorsese em 1980. Época que segundo ele os filmes perderam a liberdade e temas insólitos deram uma sumida das telas. Afinal era época dos grandes blockbusters como os que Steven Spielberg e George Lucas inundaram as telas oitentistas. Uma ironia foi que eles se utilizaram bastante da nova estética reinante e depois criaram algo mais engessado feito sob medida para a indústria voltar a ganhar rios de dinheiro, vide os sucessos espetaculares de Star Wars, E.T. – o extraterrestre, Indiana Jones, Tubarão. Mas este é um assunto que voltarei mais adiante.  
O clima dos grandes estúdios de Hollywood é bem descrito por Biskind na seguinte passagem:
A Nova Hollywood implica, é claro, a existência de uma Velha Hollywood. Em meados dos anos 60, quando Bonnie e Clyde e a A primeira noite de um homem estavam sendo gestados, os estúdios ainda estavam nas mãos – crispadas pelo rigor mortis – da geração que inventara o cinema. Em 1965, Adolph Zukor, com 92 anos,e o apenas ligeiramente mais jovem Barney Balaban, de 78, ainda faziam parte da diretoria da Paramount. Jack Warner, de 73 anos, ainda chefiava a Warner Bros. Darryl F. Zanuck, de 63 anos, estava firme no comando da 20th Century Fox.
(BISKIND. 2007, p. 16 e 17)

Não foi uma surpresa que Hollywood demorou tanto para entender o que estava acontecendo nos Estados Unidos. Temas antes proibidos como a Guerra do Vietnã, pacifismo, perigo das armas nucleares, passaram cada vez mais a ser parte do dia a dia das pessoas. Não estar conectado com estes novos tempos causava prejuízo e era preciso reverter este quadro.
Com noção de todo o risco de cometer injustiças vou traçar o perfil de cineastas que foram a mais completa tradução deste momento tão profícuo da história do cinema americano.

Francis Ford Coppola
O diretor nasceu em Detroit em 1939, cresceu no bairro do Queens em Nova York. Com apenas 24 anos produz Demência 13. Filme de terror produzido pela lenda do gênero Roger Corman chamou a atenção para o então jovem diretor. A trilogia O poderoso chefão (principalmente o 1° e o 2°) é um dos filmes mais icônicos da segunda metade do século XX. A saga da família Corleone é contada de uma maneira magistral.  Faturou duas palmas de ouro de melhor filme em Cannes por A conversação em 1974 e por Apocalypse Now em 1979. No Oscar levou a estatueta de melhor diretor em 1975 por O poderoso chefão II.

Terrence Malick
Diretor bissexto, tem apenas 7 longas no currículo. Por discordâncias com a indústria do cinema fica de 1978 a 1998 sem dirigir nenhum filme. Diferente de outros nomes da época não entrou na direção por meio de alguma universidade de cinema. Sua formação superior foi em filosofia, conseguindo em 1965 o diploma da Universidade Harvard. Estreia nos longas-metragens em 1973 com Badlands. Em 1979 recebe a palma de ouro de melhor diretor por Cinzas no paraíso.   

Robert Altman
Com carreira bem-sucedida na televisão decide arriscar no cinema. Mas foi com M.A.S.H de 1970 que conseguiu notoriedade. A comédia se passa na Guerra da Coréia nos anos 50, porém com um tom farsesco e anárquico. Sob a ótica de cirurgiões, nada escapa às ácidas ironias. A hierarquia militar e a falta de sentido da guerra são alguns dos alvos.
Após dirigir clássicos como Onde os homens são homens (1971), Nashville (1975) e 3 Mulheres (1977) durante os anos 70 coleciona alguns fracassos comerciais que o deixam meio afastado das grandes produções. O que o leva de volta para a televisão em diversas produções dos anos 80. Porém tem o seu valor novamente reconhecido com Van Gogh – vida e obra de um gênio (1990) e principalmente com O jogador (1992). Continua ativo até o ano de sua morte em 2006.

Martin Scorsese
Um dos mais populares, teve uma obra quase impecável. Alguns fracassos de crítica e público, mas tem no currículo filmes que se tornaram verdadeiros ícones da cultura americana. Taxi Driver, Touro Indomável e Caminhos perigosos são obras que representam bem o estilo de filmes da época. Com o ator Robert de Niro, seu parceiro habitual, tipos loucos da sociedade são exibidos na tela. O motorista de taxi é a encarnação de um tipo integrante de uma sociedade suja e paranoica que vira um justiceiro louco. Taxi Driver é arrojado e inovador, um autêntico filme de autor. Continua sua bem sucedida carreira fazendo inclusive filmes em 3D, como foi o caso de A invenção de Hugo Cabret, ainda arranja tempo para bons projetos para o canal de televisão HBO. Como foi o caso de Boardwalk Empire (2010) e Vinyl (2016).

Brian de Palma
Exibindo curtas desde 1960, em 1968 decide se aventurar nos longas com Muerder à la mod. Sua obra quase sempre está permeada por assassinatos e desordem psíquica. Tem como grande ídolo Hitchcock, que serve de inspiração para filme como Trágica obsessão (1976) e Vestida para matar (1980) que são exemplos de reverência ao estilo do mestre do suspense.

Como toda lista de melhores é injusta, sigo com o nome de outros diretores que foram essenciais para a Nova Hollywood.
Michael Cimino
O Franco Atirador (1978); Portões do Paraíso (1980)
Monte Hellman
Corrida sem fim (1972), Galo de briga (1974)
Hal Ashby
 Ensina-me a viver (1971); A Última Missão (1973)
Peter Bogdanovich
A última sessão de cinema (1971); Lua de Papel (1973)
William Friedkin
Operação França (1971); O exorcista (1973)
John Milius
O vento e o Leão (1975); Amargo Reencontro (1978);
Paul Schrader
Vivendo na corda bamba (1978); Hardcore – No submundo do sexo (1979)


Auge
Os anos de 1972 e 1973 foram mágicos para esse grupo. Um verdadeiro ano de afirmação com feitos que o inseriram de vez no cenário das grandes produções. Sendo verdadeiros salvadores de uma indústria que vinha capenga e decadente. O sopro de vitalidade destas obras cinematográficas rendeu muito dinheiro para os estúdios. O Poderoso Chefão I, Operação França, A última sessão de cinema eram campeões de bilheteria. O retorno financeiro era muitas vezes maior que o que foi investido.
A indicação de atores e diretores associados ao movimento deu um grande prestígio. Estes foram outros sucessos de bilheteria marcantes da época: O exorcista, Klute, Carrie - A estranha, All that jazz – o show deve continuar.

Decadência
O clima receptivo dos anos loucos da geração de 68 foi diminuindo cada vez mais. Fatores como a eleição de Ronald Reagan em 1981, o ambiente não era mais tão liberal e o grande público acabou virando as costas para aqueles filmes obscuros e com personagens sombrios e solitários. Esta foi a época onde a indústria conseguiu absorver vários elementos inovadores, só que engessou em muitos outros aspectos. Os filmes de George Lucas e Steven Spielberg foram essenciais para o reerguimento dos magnatas do setor. O filme não era mais apenas um filme. Era também toda a linha associada de produtos que saiam na esteira do lançamento. Brinquedos, bonés, bonecos, camisas e até jogos eletrônicos eram uma nova maneira dos estúdios e os associados ganharem muito dinheiro.
Porém este não era o estilo daqueles filmes enigmáticos. Era necessário toda uma imaginação fantástica para criar seres que além de estarem nas telas tinham que virar produtos comerciáveis. Star Wars, apesar de todas as suas qualidades, não é um trabalho profundo. Mas era sob medida para estes novos parâmetros, sendo um dos maiores campeões de bilheteria. Exemplo seguido por Indiana Jones, Tubarão e E.T – o extraterrestre. Apesar de terem bebido da fonte foram os artífices da nova hollywood depois do furacão da Nova Hollywood. George Lucas tem dois filmes interessantes feitos antes da fama que veio com Star Wars. THX 1138 (1971) é uma ficção científica intimista com uma proposta bem diferente da franquia de sucesso que criou depois. Loucuras de verão (1973) tem um teor nostálgico que encanta a todos ao descrever as aventuras de jovens em uma pequena cidade do interior da Califórnia. Já Spielberg chamou atenção com um filme independente chamado Encurralados (1971). Não que eles sejam traidores ou algo do tipo. Mas o cinema ficou muito mais infantilizado e raso quando a mentalidade deles conseguiu a hegemonia dos corações e mentes de Hollywood.
Fernando Mascarello, organizador do livro História do cinema mundial faz uma boa análise deste momento de transição.
Tomados em conjunto, os três blockbusters de Spielberg, Lucas e Badham introduzem um sem-número de elementos que pautarão a estratégia econômica da Hollywood pós-1975. Do ângulo do consumo, ainda que se mantenha e refine a ideia da segmentação, a indústria descobre no público adolescente e juvenil do período – o da apolítica geração pós-contracultura – o seu novo cliente massivo (que, em breve, será esmagadora maioria) no circuito primário de exibição.
(MASCARELLO. 2012, p. 346)

Outro fator que contribuiu bastante para a queda foi o fracasso monumental de O Portal do Paraíso em 1980. O diretor Michael Cimino, morto este ano aos 77 anos, lançou um western intimista que tinha a duração original planejada de mais de 5 horas. Com os cortes dos produtores ficou em 2 horas e meia na versão final. O filme custou cerca de 45 milhões de dólares (o que em valores atualizados seria perto de 200 milhões), porém a bilheteria foi um desastre. Apenas 1,5 milhão de dólares em valores da época foi arrecadado. Resultando na falência da United Artists, produtora que deu uma grande contribuição para o movimento. Apesar de ter se consagrado ganhando o prêmio de melhor diretor e o de melhor filme no Oscar de 1978 por O franco atirador, entrou em desgraça. Dirigindo apenas mais 4 longas em sua vida.    
Quem dá uma boa outra versão para o fim é Luiz Carlos Oliveira em artigo assinado para o catálogo da mostra Easy Riders – o cinema da Nova Hollywood. Ele diz que :
Com o fim do governo Jimmy Carter e de sua política de paz: a década de 80 seria dos republicanos e dos yuppies, dos reacionários e do cinema careta de roteiro, que os produtores das majors veriam como antídoto aos excessos cometidos pelos ases da Nova Hollywood. Esta, aliás, também chega ao fim, depois dos fracassos sucessivos de O portal do paraíso, Touro Indomável, Um tiro na noite e O fundo coração. Aquele momento ímpar em que o cinema de autor deu as cartas em Hollywood não tinha mesmo como virar regra, estava fadado a ser excessão.”
(OLIVEIRA. 2015, p. 25)


Mesmo passados todos esses anos podemos afirmar que o cinema americano nunca mais teve a ousadia destes anos. Claro que sempre tem um ou outro que mantém esta chama viva. Inclusive os que ainda estão vivos, óbvio que o passar dos anos abaixam um pouco o fogo revolucionário da mudança. Mas podemos sentir um grande vigor em nomes como Martin Scorsese, Brian de Palma e Terrence Malick. Porém ultimamente pode-se observar um dedo da Nova Hollywood mais na televisão que no cinema. Com a grande revolução observada nas séries de televisão desde Sopranos observa-se o perfil de personagens mais obscuros. É o que nota o jornalista Brett Martin no livro Homens difíceis – os bastidores de Breaking Bad, Família Soprano, Mad Men e outras séries revolucionárias. 

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

De Caligari a Hitler - Uma História Psicológica do Cinema Alemão

O cinema é a arte que melhor representa o século XX. Os grandes eventos que balançaram o século passado estão sempre de alguma forma representados nos 24 quadros por segundo que é uma película. Muitos dos nossos sonhos, frustações, conflitos e anseios estão representados nas telas. Partindo desta premissa Siegfried Kracauer escreveu em 1947 o livro De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão. A Alemanha depois da derrota na 1ª guerra entrou num caos social e político poucas vezes visto na história, que acabou com a ascensão de Hitler e do partido nazista em 1933. Na verdade o livro começa antes, é um verdadeiro passeio pela história do cinema alemão. Vai desde os primórdios da produção cinematográfica do país, sempre buscando demonstrar a tríplice relação entre público, contexto histórico e os filmes.

Kracauer tem como ponto de partida a noção de que o cinema reflete a mentalidade de uma nação de uma maneira mais direta que qualquer outra arte. As razões de tal afirmação são duas segundo ele. A primeira é de que os filmes nunca são produtos de um só indivíduo. O caráter coletivo é uma das marcas desta arte. O processo produtivo passa por várias cabeças e departamentos. A segunda é de que os filmes são destinados, e interessam às multidões anônimas. O que indica que de alguma maneira o diretor tem que agradá-la, pois como é caro produzir um filme é necessário um respaldo da bilheteria. Desta simbiose de intenções e gestos surge este poderoso meio de comunicação que mostrou (e antecipou) como o povo alemão de alguma maneira precisava de um líder que pudesse unir a nação. Os exemplos são muitos, Kracauer cita que o tipo de cinema feito nos EUA (onde os heróis são quase sempre individualistas e seguros de si) não fazia muito sentido para o público alemão. Mais pautado na coletividade e submissão às autoridades. Esta é uma das grandes contribuições do alemão. Se você quiser conhecer melhor um povo, veja seus filmes.

Através do tempo houve pessoas que fizeram críticas ao método do autor. Uma marcante foi uma entrevista que Fritz Lang deu em 1959 para a célebre revista Cahiers du Cinéma. Nela o diretor de Metrópolis diz:

 “Eu conheço um homem chamado S. Kracauer que escreveu um livro, De Caligari a Hitler. Sua teoria é absolutamente falsa. Ele procurou todos os argumentos para provar a verdade de uma teoria falsa. Por este motivo, me esforcei em dissuadir a juventude de hoje de acreditar na verdade de um livro que contém tantas idiotices”
(Cahiers du Cinema n°99, pp. 1-9)



Apesar das duras palavras deste ícone do expressionismo alemão não podemos deixar de lado as interessantes análises suscitadas do livro. Talvez a birra de Lang venha das críticas pouco amistosas de seus filmes feitas no livro. Para Kracauer, Lang era uma figura talentosa, mas menor que seus pares. Dizendo veladamente que talvez essa fosse a razão dele ter demorado tanto a ser convidado a trabalhar nos EUA, bem depois de nomes como Friedrich Wilhelm Murnau e Ernst Lubitsch.
                    
Ele realmente pode ter exagerado em alguns pontos e realmente ter forçado demais suas interpretações para se encaixarem na sua teoria. Mas uma coisa não pode ser negada, o livro é um trabalho rígido de crítica cinematográfica, um marco para quem quiser se familiarizar com os bastidores da UFA, a “Hollywood” alemã da época. Os gêneros e roteiristas, a relação com a pintura e o teatro expressionista. Como o ministério da propaganda nazista se apropriou da UFA para fins próprios.

Nesta rica fonte de pesquisa podemos conhecer por completo os grandes filmes da época. Um dos movimentos mais profícuos da história do cinema. Estilo que influência diretores até hoje. Ainda mais com o êxodo de vários cineastas alemães, o que encheu Hollywood da mais alta qualidade cinematográfica. Gêneros como o noir e o de gangster nunca teriam atingido o mesmo brilho sem o uso incrível da fotografia escura e das sombras do expressionismo. O gabinete do dr.Caligari de 1917 é uma destas joias analisadas por Kracauer. O filme de 1917 é um dos marcos do movimento. Por intermédio dele sabemos dos pequenos detalhes da produção e das intenções frustradas dos roteiristas. Mas ele não se prende somente nas obras que atingiram destaque internacional.

Apesar do tom crítico o livro é uma ode para aquela Alemanha tão criativa da República de Weimar. Pois para a ideologia nazista a arte contemporânea era degenerada. Mas antes desde época sombria para a Alemanha artistas como Bertold Brecht, Kurt Weill, Fritz Lang, Billy Wilder, Paul Klee e escola de arte e arquitetura da Bauhaus eram alguns dos elementos que circulavam por esta época mágica da cultura alemã. Pois como o cinema era uma arte coletiva, ele não podia deixar de adquirir vários elementos das outras artes. Após Hitler se tornar chanceler ocorreu um êxodo destes grandes artistas. E todo o dinamismo foi podado em nome de uma arte oficial nazista.
            




            

domingo, 27 de abril de 2014

Rebelião escrava no Brasil: a História do levante dos Malês em 1835


João José Reis é um dos historiadores brasileiros mais celebrados da atualidade. Sua obra se foca na escravidão, a questão social e política mais marcante do século XIX no Brasil. Muitas vezes a História se acostumou a dar uma visão privilegiada das classes mais abastadas. Como dizia o escritor uruguaio Eduardo Galeano, a história dos vencedores. Porém muitas vezes ela não dá conta de toda a complexidade das relações sociais de uma época. A questão pela qual se debruça o escritor baiano vai justamente por este caminho. No começo da década de 80, historiadores buscaram preencher algumas lacunas vazias. Tendo por mentor Robert Slenes, esta geração foi em busca de fontes primárias para se aproximar o máximo possível destes personagens tão ignorados pela História oficial. O movimento que ficou conhecido como “virada africanista” foi um divisor de águas na historiografia da época e influenciou toda uma leva de profissionais.
O mito criado por Gilberto Freyre em Casa grande e Senzala influenciou todo um imaginário acerca das relações entre senhores e escravos. Partindo do pressuposto dum suposto consentimento, segundo ele, as relações raciais eram harmônicas. Ao analisar os detalhes dos motivos que levaram à Revolta dos Malês, Reis nos apresenta uma rica visão da heterogeneidade que era o Brasil da época. Ao nos depararmos com vários livros de História, temos uma África representada de maneira homogênea e primitiva. A revolta deste grupo de escravos, em sua maioria guiados pela fé muçulmana, bateu de frente com o modus operandi da Bahia. Ela ficou tão arraigada no imaginário popular dos moradores de Salvador, que um pânico generalizado pairou até muito tempo depois da derrota da Revolta dos Malês. Mas esta ousadia não poderia ficar impune, foi um enfrentamento muito direto à sociedade que tinha como base econômica esta atividade exploração, que para muitos era única maneira de manter a economia do país funcionando.

O triunfo maior deste grupo de estudiosos foi o de dar voz aos africanos e seus descendentes, os colocar como agentes do próprio destino e não apenas adendos de uma relação que não foi tão harmônica como preconizava Freyre. Ao apresentar os mais variados grupos e interesses, vamos de encontro aos anseios das mais distintas etnias que compunham o cenário africano da Bahia do séc. XIX. Cada qual com suas particularidades e interesses próprios.


Para acentuar as semelhanças e diferenças, ele percorre uma viagem de volta à África. Que etnias tiveram mais relevância, razões das rivalidades entre elas e o papel do islã, são alguns dos aspectos que são trilhados. Numa fascinante aula de História, Reis vai desde o território Haussá até os altos dos inquéritos policiais da rebelião de 1835, num autêntico tour de force pela Bahia e África. O grande triunfo do livro foi esta pesquisa minuciosa do que levou os nagôs liderarem este levante. Que não foi uma guerra santa nos moldes tradicionais do Islã, pois abarcou várias etnias diferentes, mas tendo como principais líderes os nagôs. Os detalhes da força deles são detalhados nos relatos do que era feito nas reuniões, como os ensinamentos sagrados do Alcorão, a arte da escrita árabe e o que era debatido entre eles.

Para termos uma ideia da dimensão da influência dos escravos que ficaram conhecidos como malês na Bahia, cito Alberto da Costa e Silva, que diz no seu livro Francisco Félix de Souza, mercador de escravos, que entre 1791 e 1830, chegaram a ser enviados para a Bahia 75% dos embarques que vinham da costa do Benin (de onde vinha a maioria dos escravos revoltosos). Com este fluxo tão grande de africanos de uma região com várias semelhanças culturais (sem deixar de ter suas diferenças), foi um processo quase que natural a liderança dos povos desta parte da África.

Na sua busca pelos detalhes, o livro nos deixa com a imaginação a mil no desenrolar desta saga de resistência. Apesar de o plano ter sido bem elaborado, houve uma delação que pôs abaixo o planejamento inicial. O que não ajudou na concretização de começar a luta em Salvador e depois ir em busca da união com os inúmeros escravos do Recôncavo baiano, numa procura por união. Como sabemos hoje, o plano fracassou. Mas nos deixa uma lição do tanto que mesmo na situação de escravos, as opções eram muitas e eles tinham escolhas variadas de como viver sua condição no Novo Mundo.


Impossível deduzir se esta revolta tinha potencial de se tornar uma nova revolução haitiana. Mas que foi algo com vários componentes trágicos e políticos é inegável. A vida nesta parte do Atlântico era árdua, mas o sentimento humano de resistência se fez presente mais uma vez.  

domingo, 13 de outubro de 2013

Religião e comércio na África do séc.XV ao XIX

Numa primeira impressão vemos a África como um continente que sempre foi dominado pelas potências europeias. Mas com as leituras em sala vemos que isto é um mito. A supremacia da Europa na África só se consolidou de fato no começo do séc. XX. Muito em função da superioridade bélica, com a invenção de armas mais potentes como a metralhadora e a granada. A maior força militar, com o uso de armas de fogo, ocorre desde tempos longínquos. Porém estas armas eram de alcance moderado e necessitavam a todo instante de serem recarregadas. O que dificultava um domínio eficaz das forças militares estrangeiras, ainda mais devido ao maior conhecimento dos perigos naturais das populações locais. Fazendo uma analogia com o futebol, mesmo com um time tecnicamente mais fraco, eles estavam jogando em casa e conseguiam manter seus domínios, forçando os invasores a negociar. É o que cita Isabel Castro Henriques no seu livro “O pássaro de mel”:

“Os africanos mantiveram sempre as suas escolhas nas relações comerciais com os europeus, submetendo-os às suas próprias regras religiosas: não só a organização das trocas devia respeitar as normas africanas, provocando a exasperação dos parceiros europeus e a emergência de uma série de “contratempos” determinando as relações entre os dois grupos, mas a própria circulação das mercadorias europeias, obrigava os comerciantes europeus passar pelo filtro do religioso para poder ser integrado nas estruturas sociais africanas.” (Henriques, 2006: 43). 

Ora pois, se o mito da dominação plena europeia citada acima fosse verdade, qual seria a razão destes comerciantes terem que se submeter a procedimentos de religiões que eles consideravam inferior, coisa de bárbaros que não entendiam a fé verdadeira para eles, o cristianismo. Este poder foi bastante limitado pelo simples fato deles terem que jogar com as regras do time da casa. É o que reforça Selma Pantoja no texto “Parentesco, comércio e gênero na confluência de dois universos culturais”, contido no livro “Identidades, memórias e histórias, em terras africanas”:

“Neste texto, o foco das atenções incidirá nas famílias luandenses, ressaltando-se suas origens e as redes de parentesco que permitem observar as relações identitárias nessas famílias, nos séculos XVII e XVIII. Por meio dos laços parentais, podem-se reconstruir certos arranjos familiares e reconhecer as formas pelas quais as famílias africanas assimilavam os homens brancos recém-chegados ao litoral. Também é possível perceber como os recém-chegados europeus agiam frente a sua prole mestiça como o relacionamento que estabeleciam com essas famílias. No geral, eles começavam por se integrar à constituição familiar africana.”
(Pantoja, 2006: 83)

Novamente faço a indagação da razão de povos que se consideravam superiores se integrarem de forma tão íntima com os “primitivos” africanos. Os povos do mais antigo continente davam (e ainda dão) muita importância para as suas linhagens ancestrais, o respeito absoluto era uma maneira de se comunicar eficazmente com os antepassados, muito reverenciados pelas gerações do presente. Por serem de fora e não participarem destas linhagens, os comerciantes recorriam ao casamento para poderem se inserir neste universo. Porém é bom deixar claro que eles nunca eram inseridos totalmente, pois eram apenas uma espécie de “convidados”, justamente por não terem uma linhagem direta de ancestralidade africana. Mas de qualquer maneira virando parente, os negócios eram facilitados. Temos que imaginar os grandes riscos do comércio na época. Usando a imaginação podemos nos dar conta das dificuldades. Um português chega num território estranho e tem que adentrar 500, 700, 1.000 km numa terra estranha, sujeito a todo tipo de adversidades e povos hostis. Ao se inserir nas sociedades locais por meio do matrimônio, conseguirão proteção e pactos que poderiam garantir uma passagem eficaz por meio destes territórios. Que tormentas tortuosas estes portugueses passaram! Longe de serem senhores destes povos, eles estavam ali mais de favor e seguindo as regras impostas para eles. Que mudança de perspectiva do que somos condicionados a pensar.
Mas é importante frisar que os forasteiros eram obrigados a se inserir não somente no contexto do casamento e sim também na dos rituais e das práticas religiosas. Recorro novamente Isabel Castro Henriques para reforçar esta inserção:

Os africanos dão assim provas de tenacidade, obrigando o comércio vindo do exterior a submeter-se aos ritos que caracterizam as operações comerciais organizadas no quadro do comércio interno, que até hoje não pode ser analisado em função do seu volume econômico. A homogeneidade muito profunda das cerimônias rituais limita-se a salientar, por um lado, a importância crescente do comércio, assim como pelo outro, a integração do conjunto dos comerciantes no quadro das práticas religiosas africanas. Em 1885, Silva Porto foi obrigado a participar no sacrifício ritual de um galo, sendo ele e seus homens espargidos com o sangue do animal. Para completar esta cerimônia, a caravana foi, toda, ungida com a “argila branca dos rios”.
(Henriques, 2006: 45)

Um caso bem curioso que vale a pena citar foi a do comerciante luso chamado Silva Porto. Em 1840, encontrava-se em Muatanjamba, quando o líder local morreu. Um grande número de pessoas foram sacrificadas para acompanhar o chefe no além-mundo. Até que alguém teve a ideia de sacrificar também um comerciante, que seria importante para poder manter negócios com o morto. O que seria uma grande honra para ele. Apesar de rogar por sua vida com lágrimas nos olhos, ele não escapou e virou uma espécie de embaixador dos interesses português no além. Por aí temos uma boa visão da crescente importância do comércio com os estrangeiros para os povos locais, o associando cada vez a práticas religiosas. Para nós, ocidentais do século XXI pode parecer banal o sacrifício do comerciante, mas se formos ver sob a ótica local foi uma jogada brilhante. Pois neste mundo mágico (tendo cuidado em não associar a magia com charlatanismo) de conexão frequente com os antepassados foi uma atitude acertada.

Para adentrar mais no universo das religiões africanas, do que eles entendiam como o sagrado. Vou a encontro do texto de Anderson Ribeiro Oliva, “Cosmologias africanas. Os usos e sentidos da “religião” na África”. Ao ter como foco o objetivo de esclarecer as diferenças dos conceitos de religião do ocidental e africano temos pistas valiosas do tanto que o sagrado não é algo estático, as formas que as diferentes culturas entendem o sagrado não cabem na palavra religião da maneira tradicional como nós definimos a palavra. No nosso mundo ocidental nos acostumamos a ver esta manifestação feita num lugar chamado igreja e seguindo um conjunto de dogmas escritos num livro chamado bíblia. O que diverge do modo africano, onde segundo as teorias de René Guénon, as cosmologias funcionam mais em uma base comunal do que individual. O que Mbiti corrobora:

(...) suas convicções são asseguradas pela comunidade; então não importa muito se o indivíduo aceita ou não todas as suas convicções. As cerimônias são executadas principalmente dentro ou por um grupo familiar, por parentes, pela população inteira de uma área ou por aqueles que estejam engajados de uma ocupação em comum.
(Mbiti, 1977; 14)

O que exclui a figura de um padre ou um pastor, aquele que individualmente transmiti o que Deus pensa para as pessoas. Estas diferenças causaram um grande preconceito entre os primeiros estudiosos das cosmologias africanas. Como foi o caso de Guenón, que dizia que para um fenômeno ou prática ser considerado religião deveria possuir três elementos básicos: a moral, o culto ou o dogma. E dizia que hoje somente as três grandes religiões monoteístas: o cristianismo, o judaísmo e o islamismo podiam ser taxadas como religiões de fato. A afirmação é complicada e preconceituosa com as práticas ditas religiosas dos povos “primitivos”. Pois ao criar esta complexidade para este sentimento humano tão presente desde tempos imemoriais, muitos “religares” são relegados a um segundo plano. Para não dizer que seria algo muito anti-científico aplicar métodos tão esquemáticos.

Estes tipos de redução somente contribuíram para o preconceito de que existe uma uniformidade cultural do “africano”. Onde tudo pode ser colocado debaixo do mesmo saco. Ledo engando, as civilizações do continente possuem uma diversidade cultural e religiosa tão grande como qualquer outro. Busco nas palavras de Benjamim Ray um complemento para o que foi colocado.

A equivocada suposição acerca da uniformidade cultural africana foi originada com o comércio de escravos e com os poderes coloniais, que imaginavam a vasta área da África sub-saariana como um único país ocupado pelas mesmas pessoas. A percepção de uniformidade cultural juntou-se a noção sociopolítica de raça, desenvolvida durante o séc. XIX, ignorando as identidades linguísticas, culturais e étnicas que as sociedades africanas tinham desenvolvido por milhares de anos e que continuam a definir suas vidas culturais até os dias de hoje.
(Ray, 2000: 9)

Anderson Ribeiro Oliva finaliza seu texto dizendo que pelo fato de não existir nos moldes ocidentais a distinção entre o profano e o sagrado. Desta maneira as cosmologias africanas não podem ser vistas como um todo uniforme, “mas sim inseridas num grande contexto de diversidades de relações com o sagrado, crenças e práticas físicas e metafísicas. Não somente entre os grupos étnicos- linguísticos, sociedades e regiões, mas dentro destas próprias”.

Amarrando todas as ideias debatidas acima, vemos que os primeiros contatos comerciais entre os europeus e africanos foram marcados pela necessidade e urgência dos primeiros se adequarem e não o contrário como podemos ser levados a pensar. Acentuo o papel dos portugueses (já que os textos se focam nos contatos que este país fez) neste processo, que para conseguir a supremacia do tráfico negreiro, atividade comercial super-rentável na época, se adaptaram com grande eficácia aos costumes dos locais africanos que os proporcionaram grandes dividendos. Claro que deve ser deixado claro que houve um grande etnocentrismo nesta troca cultural, sempre os lusos se vendo como superiores. Porém não deve ser negado que a pequena nação europeia foi bem longe na submissão às regras locais. Para maior conhecimento desta maleabilidade lusa me dirijo para o capítulo I do livro “Casa Grande e Senzala”, Características gerais da colonização portuguesa do Brasil:

“A singular predisposição do português para a colonização híbrida
e escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado
étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África.
Nem intransigentemente de uma nem de outra, mas das duas. A
influência africana fervendo sob a europeia e dando um acre requeime
à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro
correndo por uma grande população brancarana quando não predominando
em regiões ainda hoje de gente escura; o ar da África, um ar
quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura
as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da
Igreja medieval; tirando os ossos ao cristianismo, ao feudalismo, à
arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim,
ao próprio caráter do povo. A Europa reinando mas sem governar;
governando antes a África.”
(Freyre, 1933; 33)

Claro que guardadas as devidas críticas que a obra de Gilberto Freyre tem recebido ultimamente, este é um perfil interessante das razões deles serem mais liberais que outros povos europeus.