segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

O reconhecimento tardio de Humberto Mauro


Humberto Mauro foi um dos diretores mais fascinantes que o cinema brasileiro teve. Glauber Rocha fez uma definição muito boa do que representou o diretor. Em entrevista ao documentário Mauro, Humberto de David Neves diz que o mineiro é o fundador do estilo cinematográfico brasileiro. Sendo o grande percursor do Cinema Novo e com uma importância cultural à altura de um Heitor Villa-Lobos, um Guimarães Rosa ou um Portinari. Apesar de algumas opiniões meio tresloucadas, Glauber tinha razão em colocá-lo neste patamar. O mais incrível é que mesmo com todas estas qualidades ele era um autêntico desconhecido da maior parte do público de sua época. Sua carreira foi prejudicada por um preconceito que até hoje perdura contra o filme nacional, classificado como inferior e popularesco. Além deste pesar, ainda sofreu bastante com a até hoje problemática distribuição das obras nacionais num mercado inundado por filmes estrangeiros. Somente na década de 60 passou a ser mais respeitado com a redescoberta de seus filmes que sobraram, infelizmente alguns se foram para sempre dado o descaso com a preservação das primeiras gerações do cinema nacional. Pesquisadores, críticos e cineastas de peso fizeram este resgate. Nomes como Alex Viany, David Neves e principalmente Paulo Emilio Salles Gomes o deram o reconhecimento devido.
A carreira de Mauro começou em 1925 com o curta Valadião, o cratera. Filmado com uma câmera Pathé-baby 9,5 mm foi o primeiro contato com a arte de filmar. Seu interesse pela sétima arte começou ao se envolver com eletrônicos, principalmente o rádio. Depois se interessou pela fotografia. Daí para o cinema foi um pulo. Seu grande incentivador e mestre nesta fase inicial foi Pedro Comello. Imigrante italiano, chegou em Cataguases em 1914 e tinha um estúdio de fotografia. A amizade foi instantânea e prolífica. Estava iniciado o que ficou conhecido como o Ciclo de Cataguases.
Depois do curta citado, eles tentaram fazer um filme que se chamaria Os três irmãos. Com direção de Comello, o projeto naufragou por conta da dificuldade em materializar o projeto. Daí Humberto Mauro dirigiu seu primeiro longa. Na primavera da vida foi considerado um êxito pois o filme de baixo orçamento se pagou somente com exibições em Cataguases e região. Protagonizado por Eva Nill, nome artístico de Eva Comello (filha de Pedro), e Bruno Mauro (irmão do diretor) foi uma experiência que consolidou a escolha dele ser diretor. A trama é basicamente Eva Nill interpretando uma moça simples, filha de um vigia fiscal, que vive romance com um engenheiro e um contrabandista, atrapalhando o trabalho e os planos de seu pai. Infelizmente o filme não se conservou para as futuras gerações. Desta primeira fase, tanto esse quanto Valadião, o cratera se perderam para sempre. A noção de preservação dos primeiros filmes no Brasil é um processo que veio somente depois. Processo que se consolidou somente com a criação das cinematecas.
Com o interesse cada vez maior dos dois amigos, a brincadeira começou a ganhar ares mais profissionais. A criação da Phebo Sul America Film foi um marco. Com o apoio de personalidades locais que toparam financiar o projeto, os filmes começaram a ficar mais caros e bem realizados. Daí veio Thesouro Perdido em 1927. No livro História do Cinema Brasileiro de Fernão Ramos, em capítulo dedicado ao ciclo de Cataguases diz sobre esta parceria que:
“O projeto é abandonado e, em seguida, fundam a Phebo Sul America Film, que conta com o investimento de Homero Cortes Domingues, dono das Casas Carcacenas, e Agenor de Barros, homem do café e da Agência Buick. O primeiro filme da Phebo, projeto mais realista, é Na primavera da vida (1926), história e direção de Humberto com o pseudônimo de Reynaldo Mazzei. A essa altura já havia aprendido cinegrafia, roteiro e direção, tanto através dos ensinamentos do mestre Comello, quanto de seu esforço de autodidata.”
(RAMOS, 1987. P. 85)   

Antes de entrar no filme em si é importante falar sobre a crise que aconteceu entre Humberto Mauro e Eva Nill. Por conta de um gênio forte bateu de frente com o diretor e saiu do projeto no começo das filmagens e foi substituída por Bebe Mauro, esposa do diretor. Isto aconteceu pois ocorreu uma grande dificuldade em arrumar uma substituta para Eva. O cinema era uma arte que não possuía a melhor das reputações e desde os tempos do teatro, a atriz era vista pela sociedade como um tipo de mulher fácil. Olhando as fotos de Eva que chegaram até os dias de hoje vemos uma mulher misteriosa e com uma beleza arrebatadora. Paulo Emilio Salles Gomes fez uma boa definição dos efeitos do fenômeno Eva Nill sobre as plateias da época.
A tese de doutorado que Paulo Emilio Salles Gomes defendeu e que virou livro é uma referência obrigatória para quem quer adentrar no universo de Mauro. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte conta com uma riqueza incrível de detalhes não só histórias do diretor, mas também de todo o espírito do tempo da época. O foco é somente na primeira fase, no que hoje é conhecido como Ciclo de Cataguases. Ele vai desde a história dos pais de Mauro até a realização de Sangue Mineiro (1929), o último filme do ciclo. Os personagens do livro são encantadores. Se hoje fazer cinema no Brasil é um calvário, imagine naquela época. Mas desta dificuldade surgiu um cenário único no contexto da evolução do cinema mundial, realizações altamente pessoais numa época que a sétima arte ainda estava se consolidando.
Daí a importância do estudo de Paulo Emilio, até então Mauro foi uma figura meio esquecida dos círculos cinematográficos. Apesar de alguns críticos falarem bem de seus filmes, a maioria esmagadora era contra. Todo tipo de acusações que além de revelar uma crítica de cinema em jornais ainda era feita por pessoas que não tinham a sensibilidade adequada. A perseguição era tanta que Mauro recebeu o jocoso apelido de Freud de Cascadura do jornalista Henrique de Pongetti na ocasião do lançamento de Ganga Bruta no Rio de Janeiro numa crítica para o periódico O Globo em 1933. O comentário foi por conta de algumas referências à psicanálise feitas na película.
“O último filme feito made in Cascadura, que vimos na Cinelândia, tinha dois mil metros de celuloide, esticando uma bobagem que caberia nas costas de um selo. O público riu do drama até onde pode e, quando não podia mais, foi chorar pelo dinheiro da entrada na cama, que é lugar quente… Pois bem: quando se referiam ao insucesso do filme em conversas com os seus incorrigíveis perpetradores, eles diziam com um sorriso de vitória: “O público não entendeu que o drama era freudiano… O nosso público nem sabe que é Freud!...”
(Pongetti, Henrique. O Globo. Rio de Janeiro, 2 de outubro de 1933) 
A História mostrou o tanto que os críticos estavam errados. O cinema americano sempre foi muito forte no Brasil, principalmente depois que começou a 1ª Guerra Mundial (1914-1918). Com a guerra na Europa a produção teve uma queda acentuada, vazio que foi preenchido pelos filmes produzidos em sua maioria em um lugar que viria a se tornar sinônimo do espetáculo cinematográfico, Hollywood era o nome de uma cidade da Califórnia que teve seu potencial visto por D. W. Griffith. Daí o fascínio de críticos com o cinema dos EUA, mas que no fundo era um tipo de complexo de vira-latas em que para o filme ser bom tinha que seguir as regras do que vem de fora.
Cinearte
Apesar de ter tido uma grande importância como a conexão entre a produção brasileira que praticamente não se comunicava além de sua região. A revista Cinearte, que circulou de 1926 a 1942, foi uma grande propagadora da mentalidade de que o filme nacional deveria passar longe de temas rurais, devendo retratar o glamour da cidade grande. O que foi um baque para o cataguasense, pois ele tinha claramente um grande apreço por temas interioranos. Os principais nomes da revista eram Pedro Lima e Adhemar Gonzaga. Suas ideias hoje beiram à loucura para os padrões atuais. Além do gosto pela alta sociedade, eram xenófobos e racistas. Segue abaixo a crítica feita em 1927 para a edição de número 91.
Começava o filme expondo uma porção de pretinhos tomando banhos
ou raspando as canelas numa praia do Recife. Depois, apresentava o
centro comercial da cidade, inteiramente às moscas, vazio, ostentando
apenas belos edifícios. E o letreiro fazia então uma pilheria a esse
respeito. Em seguida, surgiam outros aspectos apreciáveis e vinha então
o Rio de Janeiro.

(THE GIRL FROM RIO. Cinearte, v.2, n.91, p.33, 23 nov. 1927)

Apesar destes desvios ideológicos, a importância da revista para o cinema nacional foi muito grande. Lima e Gonzava foram grandes conselheiros e incentivadores da produção nacional. Nem toda ela, a aversão que eles tinham pelos filmes naturais (documentários) era notória. Para a revista o importante eram os filmes de ficção, chamados na época de pousados. Apesar de podarem o talento de Mauro foram também grandes incentivadores, dando a ele a medalha de melhor filme brasileiro de 1927. E não podemos esquecer que foi Adhemar Gonzaga que convidou o mineiro para trabalhar no Rio de Janeiro no começo da década de 30 no estúdio que havia acabado de inaugurar, a Cinédia.
Um mineiro na capital
Esta foi uma importante fase de sua carreira. A mudança para a capital o trouxe um pouco de estabilidade financeira e a possibilidade de trabalhar com sua grande paixão com mais recursos e estrutura. Lá realiza como diretor Lábios sem beijos (1930), A voz do carnaval (1933) e o clássico Ganga Bruta (1933). Além de várias outras contribuições em outras áreas como direção de fotografia e iluminação. Depois de desentendimento com Gonzaga vai trabalhar no estúdio de sua amiga e atriz de filmes anteriores Carmen Santos. No Brasil Vita Filmes faz dois filmes: Favela dos meus amores (1935) e Cidade Mulher (1936). Obras que infelizmente se perderam num incêndio, sendo inacessíveis para as gerações atuais.
1937 inicia uma nova fase em sua carreira. Com o apoio de Edgar Roquete-Pinto começa a trabalhar no recém fundado Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). Onde volta para sua essência de homem do campo dirigindo documentários de todos os tipos com foco na educação do povo. Obras-primas como a série Brasilianas mostram costumes e músicas de pessoas do interior do país.

Última direção
Em 1952 realiza aquele que será seu último filme.  O canto da saudade é gravado no estúdio que cria em Vargem Grande, pequena cidade mineira onde havia nascido e morava antes de ir para Cataguases. Com mais idade e tendo controle de sua obra vai mostrar as coisas que gostava tanto. A natureza e a cultura do interior sempre tiveram alta consideração por Mauro. Chegando até a dizer em algumas entrevistas que o cinema era como a cachoeira. É um grande filme, cenas antológicas como um sonho e o próprio Mauro como ator dão ao filme um alto grau artístico. O livro Humberto Mauro – Sua vida/ sua arte/ sua trajetória no cinema com a coordenação editorial de Alex Viany, lançado em 1978. Traz uma interessante matéria que Rogério Sganzerla escreveu para o Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo em 6 de fevereiro de 1965.
“A câmera não coopera na interpretação dos atores; a montagem possui uma única função, provocar um humor regional-mineiro; não há intrigas articuladas. Ao contrário de Ganga Bruta, não possui ritmo compassado: é uma fita que flui por si mesma, como no documentário ou jornal de atualidades. Um filme que se cria. Talvez por ser o displicente e superior canto de cisne de Mauro na longa-metragem.”
(VIANY. 1978. P. 86)

Legado
Num país que sofre de esquecimento crônico como é o caso do Brasil a obra de Humberto Mauro ainda não tem a abrangência de estudos que um homem da sua altura merece. A situação já foi pior, porém o resgate da obra do resgate do mineiro deu uma arrefecida ultimamente. Sem a mesma força de obras lançadas nos anos 70 e 80. Como é o caso do livro de Paulo Emilio e obras de coletânea reunindo matérias sobre ele. Para não ser injusto, existe uma boa obra atual sobre a fase de Mauro quando fez obras sob encomenda do governo Getúlio Vargas. O pesquisador da Universidade de São Paulo, Eduardo Morettin, escreveu a respeito da trajetória da produção dos filmes Descobrimento do Brasil e Os Bandeirantes, produções feitas sob encomenda do governo Getúlio Vargas. Por intermédio dos filmes ele mergulha nas dificuldades da produção brasileira de filmes nas décadas de 1930 e 1940, a possível influência política e ideológica do pensamento hegemônico e seus efeitos sobre o diretor. Também vai para a importância do cinema com temas históricos para consolidar a história oficial do Brasil e de São Paulo.

Mauro ficou para a História como um pioneiro que conseguiu transmitir seus sentimentos em uma arte que apenas estava engatinhando no Brasil e no mundo. Sua originalidade durou mais que os ataques que sofreu. O que ficou foi a ideia de um talento extraordinário que ainda consegue destilar sua inteligência para as plateias de hoje. Não um Freud de Cascadura. E sim, um dos grandes interpretes da alma brasileira. Ele morre em 1983, mas sua obra vai perdurar e influenciará muitos futuros estudos. 

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