segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Nova Hollywood ou quando o cinema americano foi mais longe do que nunca



Poucas vezes o cinema feito nos Estados Unidos foi tão ousado e inovador quanto o período que vai de meados de 1967 até o começo dos anos 80. O movimento que a imprensa classificou de Nova Hollywood foi o celeiro de talentos como Brian de Palma, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Hal Ashby, Michael Cimino e tantos outros. Uma das características mais marcantes desta geração foi uma capacidade extraordinária de conexão com o seu tempo histórico. Enquanto o velho sistema de estúdio de Hollywood estava ruindo com fracassos monumentais de bilheteria como foi o caso de Cleópatra de 1963, uma nova geração que bailava no tom da contracultura não se via identificada naquele tom insosso que os grandes estúdios engessaram nas películas. Comportamentos hoje considerados normais não eram mostrados, um tipo de tabu que não estava conectado com os anseios da geração de 60.
Se diz que as grandes oportunidades estão nos momentos de crise e ruínas. Foi justamente neste cenário de terra arrasada que estes jovens diretores (muitos recém-saídos das faculdades de cinema que então estavam se inserindo com mais consistência no mundo acadêmico) entraram no mercado de filmes como representantes autênticos do que pensava este novo cidadão americano. Suas bases teóricas estavam calcadas mais nas novas experiências europeias como a Nouvelle Vague e o Neorrealismo italiano que a linguagem clássica do cinema americano. Não que isso signifique uma recusa completa aos cânones americanos, como mostram as constantes referências a mestres como John Ford, Howard Hawks e John Huston.
Há uma passagem sensacional no livro Como a geração do sexo, drogas e rock’n’roll salvou Hollywood do jornalista Peter Biskind que mostra os percalços desta nova geração em inserir suas ideias num ambiente afundado em velhos conceitos. Biskind relata como Warren Beatty teve que implorar para Jack Warner (chefão do Estúdio Warner) para que o hoje clássico Bonnie & Clyde – uma rajada de balas fosse financiado, testemunhas dizem que o ator teve até que se ajoelhar. No fim o magnata do cinema pensou, com tantos problemas financeiros e as pessoas cada vez menos indo para o cinema. Por que não fazer um filme com baixo orçamento? Com baixo risco e com um ator que estava principiando uma bem-sucedida carreira protagonizando e produzindo. Pelo menos o dinheiro investido seria recuperado. Não sabia ele que uma revolução estava começando.
Bonnie & Clyde – uma rajada de balas é um filme muito fora dos padrões do momento. Baseado na vida de um casal fora da lei que desafiou a polícia nos anos 20 foi uma analogia sensacional com os sentimentos dos jovens da época. Os protagonistas fogem pelos EUA roubando bancos numa busca que vai além do dinheiro. Como se eles não se encaixassem em lugar nenhum. Seus inimigos são as pessoas integradas ao sistema. Instituições como a polícia e os bancos não podiam aceitar que dois jovens pudessem levar uma vida assim e sair impunes. A reação brutal não tarda a chegar e eles são mortos numa cena, que apesar da violência da rajada de balas que recebem, é de uma beleza imensa.
Para surpresa de todos, até para o próprio Warren Beatty, o filme foi um sucesso de público e crítica. Cinemas lotados mostravam a disposição do público em filmes com temáticas mais pesadas que os agridoces filme médios americanos. Daí é importante deixar visível o importante papel da crítica em validar este novo movimento. Pauline Kael (1919-2001) foi uma crítica que trabalhou no The New York Times de 1968 a 1991. Seu estilo de escrita influenciou toda uma geração de críticos. Às vezes achamos que se um filme é bom por si só ele irá conseguir seu espaço. O cinema não é algo matemático e muitas vezes há obras que apesar de serem muito boas são muito à frente do seu tempo e não conseguem o reconhecimento merecido. Bonnie & Clyde teve a sorte de ser reconhecido por alguém do poder de influência de Kael. O que abriu muitas portas para esta geração.
Easy Rider: uma geração sobre duas rodas
Com o sucesso desta temática mais pesada nos leva ao passo seguinte: Easy Rider. Dirigido por Denis Hopper, ator de westerns que quis virar também diretor, é uma representação magnífica do que é ser um jovem sob a influência destes anos loucos. Dois caras com seus 20 e poucos anos, que não conseguiram se encaixar no sistema viajam pelos Estados Unidos em motos em busca de uma essência perdida nos grandes centros urbanos. A música da abertura não podia ser outra, a canção Born to the wild de Steppenwolf é um espelho dos anseios de toda uma geração. A América cada vez estava aceitando este novo estilo de filmar e da escolha insólita nos temas.
Com a contracultura cada vez mais ditando as cartas. Passamos a ver drogas, delinquência juvenil com uma análise diferente do paternalismo de antes. Até gêneros canônicos passarem a ser desconstruídos, até o western passou a ter uma linha menos clara entre os mocinhos e os bandidos. 

Voltando ao livro de Biskind, ele faz um recorte temporal preciso de quando começou e terminou. O filme citado acima foi o precursor em 1967 até Raging Bull (Touro Indomável) de Martin Scorsese em 1980. Época que segundo ele os filmes perderam a liberdade e temas insólitos deram uma sumida das telas. Afinal era época dos grandes blockbusters como os que Steven Spielberg e George Lucas inundaram as telas oitentistas. Uma ironia foi que eles se utilizaram bastante da nova estética reinante e depois criaram algo mais engessado feito sob medida para a indústria voltar a ganhar rios de dinheiro, vide os sucessos espetaculares de Star Wars, E.T. – o extraterrestre, Indiana Jones, Tubarão. Mas este é um assunto que voltarei mais adiante.  
O clima dos grandes estúdios de Hollywood é bem descrito por Biskind na seguinte passagem:
A Nova Hollywood implica, é claro, a existência de uma Velha Hollywood. Em meados dos anos 60, quando Bonnie e Clyde e a A primeira noite de um homem estavam sendo gestados, os estúdios ainda estavam nas mãos – crispadas pelo rigor mortis – da geração que inventara o cinema. Em 1965, Adolph Zukor, com 92 anos,e o apenas ligeiramente mais jovem Barney Balaban, de 78, ainda faziam parte da diretoria da Paramount. Jack Warner, de 73 anos, ainda chefiava a Warner Bros. Darryl F. Zanuck, de 63 anos, estava firme no comando da 20th Century Fox.
(BISKIND. 2007, p. 16 e 17)

Não foi uma surpresa que Hollywood demorou tanto para entender o que estava acontecendo nos Estados Unidos. Temas antes proibidos como a Guerra do Vietnã, pacifismo, perigo das armas nucleares, passaram cada vez mais a ser parte do dia a dia das pessoas. Não estar conectado com estes novos tempos causava prejuízo e era preciso reverter este quadro.
Com noção de todo o risco de cometer injustiças vou traçar o perfil de cineastas que foram a mais completa tradução deste momento tão profícuo da história do cinema americano.

Francis Ford Coppola
O diretor nasceu em Detroit em 1939, cresceu no bairro do Queens em Nova York. Com apenas 24 anos produz Demência 13. Filme de terror produzido pela lenda do gênero Roger Corman chamou a atenção para o então jovem diretor. A trilogia O poderoso chefão (principalmente o 1° e o 2°) é um dos filmes mais icônicos da segunda metade do século XX. A saga da família Corleone é contada de uma maneira magistral.  Faturou duas palmas de ouro de melhor filme em Cannes por A conversação em 1974 e por Apocalypse Now em 1979. No Oscar levou a estatueta de melhor diretor em 1975 por O poderoso chefão II.

Terrence Malick
Diretor bissexto, tem apenas 7 longas no currículo. Por discordâncias com a indústria do cinema fica de 1978 a 1998 sem dirigir nenhum filme. Diferente de outros nomes da época não entrou na direção por meio de alguma universidade de cinema. Sua formação superior foi em filosofia, conseguindo em 1965 o diploma da Universidade Harvard. Estreia nos longas-metragens em 1973 com Badlands. Em 1979 recebe a palma de ouro de melhor diretor por Cinzas no paraíso.   

Robert Altman
Com carreira bem-sucedida na televisão decide arriscar no cinema. Mas foi com M.A.S.H de 1970 que conseguiu notoriedade. A comédia se passa na Guerra da Coréia nos anos 50, porém com um tom farsesco e anárquico. Sob a ótica de cirurgiões, nada escapa às ácidas ironias. A hierarquia militar e a falta de sentido da guerra são alguns dos alvos.
Após dirigir clássicos como Onde os homens são homens (1971), Nashville (1975) e 3 Mulheres (1977) durante os anos 70 coleciona alguns fracassos comerciais que o deixam meio afastado das grandes produções. O que o leva de volta para a televisão em diversas produções dos anos 80. Porém tem o seu valor novamente reconhecido com Van Gogh – vida e obra de um gênio (1990) e principalmente com O jogador (1992). Continua ativo até o ano de sua morte em 2006.

Martin Scorsese
Um dos mais populares, teve uma obra quase impecável. Alguns fracassos de crítica e público, mas tem no currículo filmes que se tornaram verdadeiros ícones da cultura americana. Taxi Driver, Touro Indomável e Caminhos perigosos são obras que representam bem o estilo de filmes da época. Com o ator Robert de Niro, seu parceiro habitual, tipos loucos da sociedade são exibidos na tela. O motorista de taxi é a encarnação de um tipo integrante de uma sociedade suja e paranoica que vira um justiceiro louco. Taxi Driver é arrojado e inovador, um autêntico filme de autor. Continua sua bem sucedida carreira fazendo inclusive filmes em 3D, como foi o caso de A invenção de Hugo Cabret, ainda arranja tempo para bons projetos para o canal de televisão HBO. Como foi o caso de Boardwalk Empire (2010) e Vinyl (2016).

Brian de Palma
Exibindo curtas desde 1960, em 1968 decide se aventurar nos longas com Muerder à la mod. Sua obra quase sempre está permeada por assassinatos e desordem psíquica. Tem como grande ídolo Hitchcock, que serve de inspiração para filme como Trágica obsessão (1976) e Vestida para matar (1980) que são exemplos de reverência ao estilo do mestre do suspense.

Como toda lista de melhores é injusta, sigo com o nome de outros diretores que foram essenciais para a Nova Hollywood.
Michael Cimino
O Franco Atirador (1978); Portões do Paraíso (1980)
Monte Hellman
Corrida sem fim (1972), Galo de briga (1974)
Hal Ashby
 Ensina-me a viver (1971); A Última Missão (1973)
Peter Bogdanovich
A última sessão de cinema (1971); Lua de Papel (1973)
William Friedkin
Operação França (1971); O exorcista (1973)
John Milius
O vento e o Leão (1975); Amargo Reencontro (1978);
Paul Schrader
Vivendo na corda bamba (1978); Hardcore – No submundo do sexo (1979)


Auge
Os anos de 1972 e 1973 foram mágicos para esse grupo. Um verdadeiro ano de afirmação com feitos que o inseriram de vez no cenário das grandes produções. Sendo verdadeiros salvadores de uma indústria que vinha capenga e decadente. O sopro de vitalidade destas obras cinematográficas rendeu muito dinheiro para os estúdios. O Poderoso Chefão I, Operação França, A última sessão de cinema eram campeões de bilheteria. O retorno financeiro era muitas vezes maior que o que foi investido.
A indicação de atores e diretores associados ao movimento deu um grande prestígio. Estes foram outros sucessos de bilheteria marcantes da época: O exorcista, Klute, Carrie - A estranha, All that jazz – o show deve continuar.

Decadência
O clima receptivo dos anos loucos da geração de 68 foi diminuindo cada vez mais. Fatores como a eleição de Ronald Reagan em 1981, o ambiente não era mais tão liberal e o grande público acabou virando as costas para aqueles filmes obscuros e com personagens sombrios e solitários. Esta foi a época onde a indústria conseguiu absorver vários elementos inovadores, só que engessou em muitos outros aspectos. Os filmes de George Lucas e Steven Spielberg foram essenciais para o reerguimento dos magnatas do setor. O filme não era mais apenas um filme. Era também toda a linha associada de produtos que saiam na esteira do lançamento. Brinquedos, bonés, bonecos, camisas e até jogos eletrônicos eram uma nova maneira dos estúdios e os associados ganharem muito dinheiro.
Porém este não era o estilo daqueles filmes enigmáticos. Era necessário toda uma imaginação fantástica para criar seres que além de estarem nas telas tinham que virar produtos comerciáveis. Star Wars, apesar de todas as suas qualidades, não é um trabalho profundo. Mas era sob medida para estes novos parâmetros, sendo um dos maiores campeões de bilheteria. Exemplo seguido por Indiana Jones, Tubarão e E.T – o extraterrestre. Apesar de terem bebido da fonte foram os artífices da nova hollywood depois do furacão da Nova Hollywood. George Lucas tem dois filmes interessantes feitos antes da fama que veio com Star Wars. THX 1138 (1971) é uma ficção científica intimista com uma proposta bem diferente da franquia de sucesso que criou depois. Loucuras de verão (1973) tem um teor nostálgico que encanta a todos ao descrever as aventuras de jovens em uma pequena cidade do interior da Califórnia. Já Spielberg chamou atenção com um filme independente chamado Encurralados (1971). Não que eles sejam traidores ou algo do tipo. Mas o cinema ficou muito mais infantilizado e raso quando a mentalidade deles conseguiu a hegemonia dos corações e mentes de Hollywood.
Fernando Mascarello, organizador do livro História do cinema mundial faz uma boa análise deste momento de transição.
Tomados em conjunto, os três blockbusters de Spielberg, Lucas e Badham introduzem um sem-número de elementos que pautarão a estratégia econômica da Hollywood pós-1975. Do ângulo do consumo, ainda que se mantenha e refine a ideia da segmentação, a indústria descobre no público adolescente e juvenil do período – o da apolítica geração pós-contracultura – o seu novo cliente massivo (que, em breve, será esmagadora maioria) no circuito primário de exibição.
(MASCARELLO. 2012, p. 346)

Outro fator que contribuiu bastante para a queda foi o fracasso monumental de O Portal do Paraíso em 1980. O diretor Michael Cimino, morto este ano aos 77 anos, lançou um western intimista que tinha a duração original planejada de mais de 5 horas. Com os cortes dos produtores ficou em 2 horas e meia na versão final. O filme custou cerca de 45 milhões de dólares (o que em valores atualizados seria perto de 200 milhões), porém a bilheteria foi um desastre. Apenas 1,5 milhão de dólares em valores da época foi arrecadado. Resultando na falência da United Artists, produtora que deu uma grande contribuição para o movimento. Apesar de ter se consagrado ganhando o prêmio de melhor diretor e o de melhor filme no Oscar de 1978 por O franco atirador, entrou em desgraça. Dirigindo apenas mais 4 longas em sua vida.    
Quem dá uma boa outra versão para o fim é Luiz Carlos Oliveira em artigo assinado para o catálogo da mostra Easy Riders – o cinema da Nova Hollywood. Ele diz que :
Com o fim do governo Jimmy Carter e de sua política de paz: a década de 80 seria dos republicanos e dos yuppies, dos reacionários e do cinema careta de roteiro, que os produtores das majors veriam como antídoto aos excessos cometidos pelos ases da Nova Hollywood. Esta, aliás, também chega ao fim, depois dos fracassos sucessivos de O portal do paraíso, Touro Indomável, Um tiro na noite e O fundo coração. Aquele momento ímpar em que o cinema de autor deu as cartas em Hollywood não tinha mesmo como virar regra, estava fadado a ser excessão.”
(OLIVEIRA. 2015, p. 25)


Mesmo passados todos esses anos podemos afirmar que o cinema americano nunca mais teve a ousadia destes anos. Claro que sempre tem um ou outro que mantém esta chama viva. Inclusive os que ainda estão vivos, óbvio que o passar dos anos abaixam um pouco o fogo revolucionário da mudança. Mas podemos sentir um grande vigor em nomes como Martin Scorsese, Brian de Palma e Terrence Malick. Porém ultimamente pode-se observar um dedo da Nova Hollywood mais na televisão que no cinema. Com a grande revolução observada nas séries de televisão desde Sopranos observa-se o perfil de personagens mais obscuros. É o que nota o jornalista Brett Martin no livro Homens difíceis – os bastidores de Breaking Bad, Família Soprano, Mad Men e outras séries revolucionárias. 

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