João
José Reis é um dos historiadores brasileiros mais celebrados da atualidade. Sua
obra se foca na escravidão, a questão social e política mais marcante do século
XIX no Brasil. Muitas vezes a História se acostumou a dar uma visão
privilegiada das classes mais abastadas. Como dizia o escritor uruguaio Eduardo
Galeano, a história dos vencedores. Porém muitas vezes ela não dá conta de toda
a complexidade das relações sociais de uma época. A questão pela qual se
debruça o escritor baiano vai justamente por este caminho. No começo da década
de 80, historiadores buscaram preencher algumas lacunas vazias. Tendo por
mentor Robert Slenes, esta geração foi em busca de fontes primárias para se
aproximar o máximo possível destes personagens tão ignorados pela História
oficial. O movimento que ficou conhecido como “virada africanista” foi um
divisor de águas na historiografia da época e influenciou toda uma leva de
profissionais.
O
mito criado por Gilberto Freyre em Casa
grande e Senzala influenciou todo um imaginário acerca das relações entre
senhores e escravos. Partindo do pressuposto dum suposto consentimento, segundo
ele, as relações raciais eram harmônicas. Ao analisar os detalhes dos motivos
que levaram à Revolta dos Malês, Reis nos apresenta uma rica visão da
heterogeneidade que era o Brasil da época. Ao nos depararmos com vários livros
de História, temos uma África representada de maneira homogênea e primitiva. A
revolta deste grupo de escravos, em sua maioria guiados pela fé muçulmana,
bateu de frente com o modus operandi da Bahia. Ela ficou tão arraigada no
imaginário popular dos moradores de Salvador, que um pânico generalizado pairou
até muito tempo depois da derrota da Revolta dos Malês. Mas esta ousadia não
poderia ficar impune, foi um enfrentamento muito direto à sociedade que tinha
como base econômica esta atividade exploração, que para muitos era única
maneira de manter a economia do país funcionando.
O
triunfo maior deste grupo de estudiosos foi o de dar voz aos africanos e seus
descendentes, os colocar como agentes do próprio destino e não apenas adendos
de uma relação que não foi tão harmônica como preconizava Freyre. Ao apresentar
os mais variados grupos e interesses, vamos de encontro aos anseios das mais
distintas etnias que compunham o cenário africano da Bahia do séc. XIX. Cada
qual com suas particularidades e interesses próprios.
Para
acentuar as semelhanças e diferenças, ele percorre uma viagem de volta à
África. Que etnias tiveram mais relevância, razões das rivalidades entre elas e
o papel do islã, são alguns dos aspectos que são trilhados. Numa fascinante
aula de História, Reis vai desde o território Haussá até os altos dos
inquéritos policiais da rebelião de 1835, num autêntico tour de force pela
Bahia e África. O grande triunfo do livro foi esta pesquisa minuciosa do que
levou os nagôs liderarem este levante. Que não foi uma guerra santa nos moldes
tradicionais do Islã, pois abarcou várias etnias diferentes, mas tendo como
principais líderes os nagôs. Os detalhes da força deles são detalhados nos
relatos do que era feito nas reuniões, como os ensinamentos sagrados do
Alcorão, a arte da escrita árabe e o que era debatido entre eles.
Para
termos uma ideia da dimensão da influência dos escravos que ficaram conhecidos
como malês na Bahia, cito Alberto da Costa e Silva, que diz no seu livro Francisco Félix de Souza, mercador de
escravos, que entre 1791 e 1830, chegaram a ser enviados para a Bahia 75%
dos embarques que vinham da costa do Benin (de onde vinha a maioria dos
escravos revoltosos). Com este fluxo tão grande de africanos de uma região com
várias semelhanças culturais (sem deixar de ter suas diferenças), foi um
processo quase que natural a liderança dos povos desta parte da África.
Na
sua busca pelos detalhes, o livro nos deixa com a imaginação a mil no
desenrolar desta saga de resistência. Apesar de o plano ter sido bem elaborado,
houve uma delação que pôs abaixo o planejamento inicial. O que não ajudou na
concretização de começar a luta em Salvador e depois ir em busca da união com
os inúmeros escravos do Recôncavo baiano, numa procura por união. Como sabemos
hoje, o plano fracassou. Mas nos deixa uma lição do tanto que mesmo na situação
de escravos, as opções eram muitas e eles tinham escolhas variadas de como viver
sua condição no Novo Mundo.
Impossível
deduzir se esta revolta tinha potencial de se tornar uma nova revolução haitiana.
Mas que foi algo com vários componentes trágicos e políticos é inegável. A vida
nesta parte do Atlântico era árdua, mas o sentimento humano de resistência se
fez presente mais uma vez.
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