domingo, 27 de abril de 2014

Rebelião escrava no Brasil: a História do levante dos Malês em 1835


João José Reis é um dos historiadores brasileiros mais celebrados da atualidade. Sua obra se foca na escravidão, a questão social e política mais marcante do século XIX no Brasil. Muitas vezes a História se acostumou a dar uma visão privilegiada das classes mais abastadas. Como dizia o escritor uruguaio Eduardo Galeano, a história dos vencedores. Porém muitas vezes ela não dá conta de toda a complexidade das relações sociais de uma época. A questão pela qual se debruça o escritor baiano vai justamente por este caminho. No começo da década de 80, historiadores buscaram preencher algumas lacunas vazias. Tendo por mentor Robert Slenes, esta geração foi em busca de fontes primárias para se aproximar o máximo possível destes personagens tão ignorados pela História oficial. O movimento que ficou conhecido como “virada africanista” foi um divisor de águas na historiografia da época e influenciou toda uma leva de profissionais.
O mito criado por Gilberto Freyre em Casa grande e Senzala influenciou todo um imaginário acerca das relações entre senhores e escravos. Partindo do pressuposto dum suposto consentimento, segundo ele, as relações raciais eram harmônicas. Ao analisar os detalhes dos motivos que levaram à Revolta dos Malês, Reis nos apresenta uma rica visão da heterogeneidade que era o Brasil da época. Ao nos depararmos com vários livros de História, temos uma África representada de maneira homogênea e primitiva. A revolta deste grupo de escravos, em sua maioria guiados pela fé muçulmana, bateu de frente com o modus operandi da Bahia. Ela ficou tão arraigada no imaginário popular dos moradores de Salvador, que um pânico generalizado pairou até muito tempo depois da derrota da Revolta dos Malês. Mas esta ousadia não poderia ficar impune, foi um enfrentamento muito direto à sociedade que tinha como base econômica esta atividade exploração, que para muitos era única maneira de manter a economia do país funcionando.

O triunfo maior deste grupo de estudiosos foi o de dar voz aos africanos e seus descendentes, os colocar como agentes do próprio destino e não apenas adendos de uma relação que não foi tão harmônica como preconizava Freyre. Ao apresentar os mais variados grupos e interesses, vamos de encontro aos anseios das mais distintas etnias que compunham o cenário africano da Bahia do séc. XIX. Cada qual com suas particularidades e interesses próprios.


Para acentuar as semelhanças e diferenças, ele percorre uma viagem de volta à África. Que etnias tiveram mais relevância, razões das rivalidades entre elas e o papel do islã, são alguns dos aspectos que são trilhados. Numa fascinante aula de História, Reis vai desde o território Haussá até os altos dos inquéritos policiais da rebelião de 1835, num autêntico tour de force pela Bahia e África. O grande triunfo do livro foi esta pesquisa minuciosa do que levou os nagôs liderarem este levante. Que não foi uma guerra santa nos moldes tradicionais do Islã, pois abarcou várias etnias diferentes, mas tendo como principais líderes os nagôs. Os detalhes da força deles são detalhados nos relatos do que era feito nas reuniões, como os ensinamentos sagrados do Alcorão, a arte da escrita árabe e o que era debatido entre eles.

Para termos uma ideia da dimensão da influência dos escravos que ficaram conhecidos como malês na Bahia, cito Alberto da Costa e Silva, que diz no seu livro Francisco Félix de Souza, mercador de escravos, que entre 1791 e 1830, chegaram a ser enviados para a Bahia 75% dos embarques que vinham da costa do Benin (de onde vinha a maioria dos escravos revoltosos). Com este fluxo tão grande de africanos de uma região com várias semelhanças culturais (sem deixar de ter suas diferenças), foi um processo quase que natural a liderança dos povos desta parte da África.

Na sua busca pelos detalhes, o livro nos deixa com a imaginação a mil no desenrolar desta saga de resistência. Apesar de o plano ter sido bem elaborado, houve uma delação que pôs abaixo o planejamento inicial. O que não ajudou na concretização de começar a luta em Salvador e depois ir em busca da união com os inúmeros escravos do Recôncavo baiano, numa procura por união. Como sabemos hoje, o plano fracassou. Mas nos deixa uma lição do tanto que mesmo na situação de escravos, as opções eram muitas e eles tinham escolhas variadas de como viver sua condição no Novo Mundo.


Impossível deduzir se esta revolta tinha potencial de se tornar uma nova revolução haitiana. Mas que foi algo com vários componentes trágicos e políticos é inegável. A vida nesta parte do Atlântico era árdua, mas o sentimento humano de resistência se fez presente mais uma vez.  

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