Numa primeira impressão vemos a África como um
continente que sempre foi dominado pelas potências europeias. Mas com as
leituras em sala vemos que isto é um mito. A supremacia da Europa na África só
se consolidou de fato no começo do séc. XX. Muito em função da superioridade
bélica, com a invenção de armas mais potentes como a metralhadora e a granada.
A maior força militar, com o uso de armas de fogo, ocorre desde tempos
longínquos. Porém estas armas eram de alcance moderado e necessitavam a todo
instante de serem recarregadas. O que dificultava um domínio eficaz das forças
militares estrangeiras, ainda mais devido ao maior conhecimento dos perigos
naturais das populações locais. Fazendo uma analogia com o futebol, mesmo com
um time tecnicamente mais fraco, eles estavam jogando em casa e conseguiam
manter seus domínios, forçando os invasores a negociar. É o que cita Isabel
Castro Henriques no seu livro “O pássaro de mel”:
“Os africanos mantiveram sempre as
suas escolhas nas relações comerciais com os europeus, submetendo-os às suas
próprias regras religiosas: não só a organização das trocas devia respeitar as
normas africanas, provocando a exasperação dos parceiros europeus e a
emergência de uma série de “contratempos” determinando as relações entre os dois
grupos, mas a própria circulação das mercadorias europeias, obrigava os
comerciantes europeus passar pelo filtro do religioso para poder ser integrado
nas estruturas sociais africanas.” (Henriques, 2006: 43).
Ora pois, se o mito da dominação plena europeia
citada acima fosse verdade, qual seria a razão destes comerciantes terem que se
submeter a procedimentos de religiões que eles consideravam inferior, coisa de
bárbaros que não entendiam a fé verdadeira para eles, o cristianismo. Este
poder foi bastante limitado pelo simples fato deles terem que jogar com as
regras do time da casa. É o que reforça Selma Pantoja no texto “Parentesco,
comércio e gênero na confluência de dois universos culturais”, contido no livro
“Identidades, memórias e histórias, em terras africanas”:
“Neste texto, o foco das atenções incidirá nas
famílias luandenses, ressaltando-se suas origens e as redes de parentesco que
permitem observar as relações identitárias nessas famílias, nos séculos XVII e
XVIII. Por meio dos laços parentais, podem-se reconstruir certos arranjos
familiares e reconhecer as formas pelas quais as famílias africanas assimilavam
os homens brancos recém-chegados ao litoral. Também é possível perceber como os
recém-chegados europeus agiam frente a sua prole mestiça como o relacionamento
que estabeleciam com essas famílias. No geral, eles começavam por se integrar à
constituição familiar africana.”
(Pantoja, 2006: 83)
Novamente faço a indagação da razão de povos que se
consideravam superiores se integrarem de forma tão íntima com os “primitivos”
africanos. Os povos do mais antigo continente davam (e ainda dão) muita
importância para as suas linhagens ancestrais, o respeito absoluto era uma
maneira de se comunicar eficazmente com os antepassados, muito reverenciados pelas
gerações do presente. Por serem de fora e não participarem destas linhagens, os
comerciantes recorriam ao casamento para poderem se inserir neste universo.
Porém é bom deixar claro que eles nunca eram inseridos totalmente, pois eram
apenas uma espécie de “convidados”, justamente por não terem uma linhagem
direta de ancestralidade africana. Mas de qualquer maneira virando parente, os
negócios eram facilitados. Temos que imaginar os grandes riscos do comércio na
época. Usando a imaginação podemos nos dar conta das dificuldades. Um português
chega num território estranho e tem que adentrar 500, 700, 1.000 km numa terra
estranha, sujeito a todo tipo de adversidades e povos hostis. Ao se inserir nas
sociedades locais por meio do matrimônio, conseguirão proteção e pactos que
poderiam garantir uma passagem eficaz por meio destes territórios. Que
tormentas tortuosas estes portugueses passaram! Longe de serem senhores destes
povos, eles estavam ali mais de favor e seguindo as regras impostas para eles.
Que mudança de perspectiva do que somos condicionados a pensar.
Mas é importante frisar que os forasteiros eram
obrigados a se inserir não somente no contexto do casamento e sim também na dos
rituais e das práticas religiosas. Recorro novamente Isabel Castro Henriques
para reforçar esta inserção:
Os africanos dão assim provas de tenacidade,
obrigando o comércio vindo do exterior a submeter-se aos ritos que caracterizam
as operações comerciais organizadas no quadro do comércio interno, que até hoje
não pode ser analisado em função do seu volume econômico. A homogeneidade muito
profunda das cerimônias rituais limita-se a salientar, por um lado, a
importância crescente do comércio, assim como pelo outro, a integração do
conjunto dos comerciantes no quadro das práticas religiosas africanas. Em 1885,
Silva Porto foi obrigado a participar no sacrifício ritual de um galo, sendo
ele e seus homens espargidos com o sangue do animal. Para completar esta
cerimônia, a caravana foi, toda, ungida com a “argila branca dos rios”.
(Henriques, 2006: 45)
Um caso bem curioso que vale a pena citar foi a do
comerciante luso chamado Silva Porto. Em 1840, encontrava-se em Muatanjamba,
quando o líder local morreu. Um grande número de pessoas foram sacrificadas
para acompanhar o chefe no além-mundo. Até que alguém teve a ideia de
sacrificar também um comerciante, que seria importante para poder manter
negócios com o morto. O que seria uma grande honra para ele. Apesar de rogar
por sua vida com lágrimas nos olhos, ele não escapou e virou uma espécie de
embaixador dos interesses português no além. Por aí temos uma boa visão da
crescente importância do comércio com os estrangeiros para os povos locais, o
associando cada vez a práticas religiosas. Para nós, ocidentais do século XXI
pode parecer banal o sacrifício do comerciante, mas se formos ver sob a ótica
local foi uma jogada brilhante. Pois neste mundo mágico (tendo cuidado em não
associar a magia com charlatanismo) de conexão frequente com os antepassados
foi uma atitude acertada.
Para adentrar mais no universo das religiões
africanas, do que eles entendiam como o sagrado. Vou a encontro do texto de
Anderson Ribeiro Oliva, “Cosmologias africanas. Os usos e sentidos da
“religião” na África”. Ao ter como foco o objetivo de esclarecer as diferenças
dos conceitos de religião do ocidental e africano temos pistas valiosas do
tanto que o sagrado não é algo estático, as formas que as diferentes culturas
entendem o sagrado não cabem na palavra religião da maneira tradicional como
nós definimos a palavra. No nosso mundo ocidental nos acostumamos a ver esta
manifestação feita num lugar chamado igreja e seguindo um conjunto de dogmas
escritos num livro chamado bíblia. O que diverge do modo africano, onde segundo
as teorias de René Guénon, as cosmologias funcionam mais em uma base comunal do
que individual. O que Mbiti corrobora:
(...) suas convicções são asseguradas pela
comunidade; então não importa muito se o indivíduo aceita ou não todas as suas
convicções. As cerimônias são executadas principalmente dentro ou por um grupo
familiar, por parentes, pela população inteira de uma área ou por aqueles que
estejam engajados de uma ocupação em comum.
(Mbiti, 1977; 14)
O que exclui a figura de um padre ou um pastor,
aquele que individualmente transmiti o que Deus pensa para as pessoas. Estas
diferenças causaram um grande preconceito entre os primeiros estudiosos das
cosmologias africanas. Como foi o caso de Guenón, que dizia que para um
fenômeno ou prática ser considerado religião deveria possuir três elementos
básicos: a moral, o culto ou o dogma. E dizia que hoje somente as três grandes
religiões monoteístas: o cristianismo, o judaísmo e o islamismo podiam ser
taxadas como religiões de fato. A afirmação é complicada e preconceituosa com
as práticas ditas religiosas dos povos “primitivos”. Pois ao criar esta
complexidade para este sentimento humano tão presente desde tempos imemoriais,
muitos “religares” são relegados a um segundo plano. Para não dizer que seria
algo muito anti-científico aplicar métodos tão esquemáticos.
Estes tipos de redução somente contribuíram para o
preconceito de que existe uma uniformidade cultural do “africano”. Onde tudo
pode ser colocado debaixo do mesmo saco. Ledo engando, as civilizações do
continente possuem uma diversidade cultural e religiosa tão grande como
qualquer outro. Busco nas palavras de Benjamim Ray um complemento para o que
foi colocado.
A equivocada suposição acerca da uniformidade
cultural africana foi originada com o comércio de escravos e com os poderes
coloniais, que imaginavam a vasta área da África sub-saariana como um único
país ocupado pelas mesmas pessoas. A percepção de uniformidade cultural
juntou-se a noção sociopolítica de raça, desenvolvida durante o séc. XIX,
ignorando as identidades linguísticas, culturais e étnicas que as sociedades
africanas tinham desenvolvido por milhares de anos e que continuam a definir
suas vidas culturais até os dias de hoje.
(Ray, 2000: 9)
Anderson Ribeiro Oliva finaliza seu texto dizendo
que pelo fato de não existir nos moldes ocidentais a distinção entre o profano
e o sagrado. Desta maneira as cosmologias africanas não podem ser vistas como
um todo uniforme, “mas sim inseridas num grande contexto de diversidades de
relações com o sagrado, crenças e práticas físicas e metafísicas. Não somente
entre os grupos étnicos- linguísticos, sociedades e regiões, mas dentro destas
próprias”.
Amarrando todas as ideias debatidas acima, vemos que
os primeiros contatos comerciais entre os europeus e africanos foram marcados
pela necessidade e urgência dos primeiros se adequarem e não o contrário como
podemos ser levados a pensar. Acentuo o papel dos portugueses (já que os textos
se focam nos contatos que este país fez) neste processo, que para conseguir a
supremacia do tráfico negreiro, atividade comercial super-rentável na época, se
adaptaram com grande eficácia aos costumes dos locais africanos que os
proporcionaram grandes dividendos. Claro que deve ser deixado claro que houve
um grande etnocentrismo nesta troca cultural, sempre os lusos se vendo como
superiores. Porém não deve ser negado que a pequena nação europeia foi bem
longe na submissão às regras locais. Para maior conhecimento desta maleabilidade
lusa me dirijo para o capítulo I do livro “Casa Grande e Senzala”, Características
gerais da colonização portuguesa do Brasil:
“A singular
predisposição do português para a colonização híbrida
e escravocrata dos
trópicos, explica-a em grande parte o seu passado
étnico, ou antes,
cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África.
Nem
intransigentemente de uma nem de outra, mas das duas. A
influência africana
fervendo sob a europeia e dando um acre requeime
à vida sexual, à
alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro
correndo por uma
grande população brancarana quando não predominando
em regiões ainda
hoje de gente escura; o ar da África, um ar
quente, oleoso,
amolecendo nas instituições e nas formas de cultura
as durezas
germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da
Igreja medieval;
tirando os ossos ao cristianismo, ao feudalismo, à
arquitetura gótica,
à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim,
ao próprio caráter
do povo. A Europa reinando mas sem governar;
governando antes a
África.”
(Freyre, 1933; 33)
Claro
que guardadas as devidas críticas que a obra de Gilberto Freyre tem recebido
ultimamente, este é um perfil interessante das razões deles serem mais liberais
que outros povos europeus.
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