domingo, 13 de outubro de 2013

Religião e comércio na África do séc.XV ao XIX

Numa primeira impressão vemos a África como um continente que sempre foi dominado pelas potências europeias. Mas com as leituras em sala vemos que isto é um mito. A supremacia da Europa na África só se consolidou de fato no começo do séc. XX. Muito em função da superioridade bélica, com a invenção de armas mais potentes como a metralhadora e a granada. A maior força militar, com o uso de armas de fogo, ocorre desde tempos longínquos. Porém estas armas eram de alcance moderado e necessitavam a todo instante de serem recarregadas. O que dificultava um domínio eficaz das forças militares estrangeiras, ainda mais devido ao maior conhecimento dos perigos naturais das populações locais. Fazendo uma analogia com o futebol, mesmo com um time tecnicamente mais fraco, eles estavam jogando em casa e conseguiam manter seus domínios, forçando os invasores a negociar. É o que cita Isabel Castro Henriques no seu livro “O pássaro de mel”:

“Os africanos mantiveram sempre as suas escolhas nas relações comerciais com os europeus, submetendo-os às suas próprias regras religiosas: não só a organização das trocas devia respeitar as normas africanas, provocando a exasperação dos parceiros europeus e a emergência de uma série de “contratempos” determinando as relações entre os dois grupos, mas a própria circulação das mercadorias europeias, obrigava os comerciantes europeus passar pelo filtro do religioso para poder ser integrado nas estruturas sociais africanas.” (Henriques, 2006: 43). 

Ora pois, se o mito da dominação plena europeia citada acima fosse verdade, qual seria a razão destes comerciantes terem que se submeter a procedimentos de religiões que eles consideravam inferior, coisa de bárbaros que não entendiam a fé verdadeira para eles, o cristianismo. Este poder foi bastante limitado pelo simples fato deles terem que jogar com as regras do time da casa. É o que reforça Selma Pantoja no texto “Parentesco, comércio e gênero na confluência de dois universos culturais”, contido no livro “Identidades, memórias e histórias, em terras africanas”:

“Neste texto, o foco das atenções incidirá nas famílias luandenses, ressaltando-se suas origens e as redes de parentesco que permitem observar as relações identitárias nessas famílias, nos séculos XVII e XVIII. Por meio dos laços parentais, podem-se reconstruir certos arranjos familiares e reconhecer as formas pelas quais as famílias africanas assimilavam os homens brancos recém-chegados ao litoral. Também é possível perceber como os recém-chegados europeus agiam frente a sua prole mestiça como o relacionamento que estabeleciam com essas famílias. No geral, eles começavam por se integrar à constituição familiar africana.”
(Pantoja, 2006: 83)

Novamente faço a indagação da razão de povos que se consideravam superiores se integrarem de forma tão íntima com os “primitivos” africanos. Os povos do mais antigo continente davam (e ainda dão) muita importância para as suas linhagens ancestrais, o respeito absoluto era uma maneira de se comunicar eficazmente com os antepassados, muito reverenciados pelas gerações do presente. Por serem de fora e não participarem destas linhagens, os comerciantes recorriam ao casamento para poderem se inserir neste universo. Porém é bom deixar claro que eles nunca eram inseridos totalmente, pois eram apenas uma espécie de “convidados”, justamente por não terem uma linhagem direta de ancestralidade africana. Mas de qualquer maneira virando parente, os negócios eram facilitados. Temos que imaginar os grandes riscos do comércio na época. Usando a imaginação podemos nos dar conta das dificuldades. Um português chega num território estranho e tem que adentrar 500, 700, 1.000 km numa terra estranha, sujeito a todo tipo de adversidades e povos hostis. Ao se inserir nas sociedades locais por meio do matrimônio, conseguirão proteção e pactos que poderiam garantir uma passagem eficaz por meio destes territórios. Que tormentas tortuosas estes portugueses passaram! Longe de serem senhores destes povos, eles estavam ali mais de favor e seguindo as regras impostas para eles. Que mudança de perspectiva do que somos condicionados a pensar.
Mas é importante frisar que os forasteiros eram obrigados a se inserir não somente no contexto do casamento e sim também na dos rituais e das práticas religiosas. Recorro novamente Isabel Castro Henriques para reforçar esta inserção:

Os africanos dão assim provas de tenacidade, obrigando o comércio vindo do exterior a submeter-se aos ritos que caracterizam as operações comerciais organizadas no quadro do comércio interno, que até hoje não pode ser analisado em função do seu volume econômico. A homogeneidade muito profunda das cerimônias rituais limita-se a salientar, por um lado, a importância crescente do comércio, assim como pelo outro, a integração do conjunto dos comerciantes no quadro das práticas religiosas africanas. Em 1885, Silva Porto foi obrigado a participar no sacrifício ritual de um galo, sendo ele e seus homens espargidos com o sangue do animal. Para completar esta cerimônia, a caravana foi, toda, ungida com a “argila branca dos rios”.
(Henriques, 2006: 45)

Um caso bem curioso que vale a pena citar foi a do comerciante luso chamado Silva Porto. Em 1840, encontrava-se em Muatanjamba, quando o líder local morreu. Um grande número de pessoas foram sacrificadas para acompanhar o chefe no além-mundo. Até que alguém teve a ideia de sacrificar também um comerciante, que seria importante para poder manter negócios com o morto. O que seria uma grande honra para ele. Apesar de rogar por sua vida com lágrimas nos olhos, ele não escapou e virou uma espécie de embaixador dos interesses português no além. Por aí temos uma boa visão da crescente importância do comércio com os estrangeiros para os povos locais, o associando cada vez a práticas religiosas. Para nós, ocidentais do século XXI pode parecer banal o sacrifício do comerciante, mas se formos ver sob a ótica local foi uma jogada brilhante. Pois neste mundo mágico (tendo cuidado em não associar a magia com charlatanismo) de conexão frequente com os antepassados foi uma atitude acertada.

Para adentrar mais no universo das religiões africanas, do que eles entendiam como o sagrado. Vou a encontro do texto de Anderson Ribeiro Oliva, “Cosmologias africanas. Os usos e sentidos da “religião” na África”. Ao ter como foco o objetivo de esclarecer as diferenças dos conceitos de religião do ocidental e africano temos pistas valiosas do tanto que o sagrado não é algo estático, as formas que as diferentes culturas entendem o sagrado não cabem na palavra religião da maneira tradicional como nós definimos a palavra. No nosso mundo ocidental nos acostumamos a ver esta manifestação feita num lugar chamado igreja e seguindo um conjunto de dogmas escritos num livro chamado bíblia. O que diverge do modo africano, onde segundo as teorias de René Guénon, as cosmologias funcionam mais em uma base comunal do que individual. O que Mbiti corrobora:

(...) suas convicções são asseguradas pela comunidade; então não importa muito se o indivíduo aceita ou não todas as suas convicções. As cerimônias são executadas principalmente dentro ou por um grupo familiar, por parentes, pela população inteira de uma área ou por aqueles que estejam engajados de uma ocupação em comum.
(Mbiti, 1977; 14)

O que exclui a figura de um padre ou um pastor, aquele que individualmente transmiti o que Deus pensa para as pessoas. Estas diferenças causaram um grande preconceito entre os primeiros estudiosos das cosmologias africanas. Como foi o caso de Guenón, que dizia que para um fenômeno ou prática ser considerado religião deveria possuir três elementos básicos: a moral, o culto ou o dogma. E dizia que hoje somente as três grandes religiões monoteístas: o cristianismo, o judaísmo e o islamismo podiam ser taxadas como religiões de fato. A afirmação é complicada e preconceituosa com as práticas ditas religiosas dos povos “primitivos”. Pois ao criar esta complexidade para este sentimento humano tão presente desde tempos imemoriais, muitos “religares” são relegados a um segundo plano. Para não dizer que seria algo muito anti-científico aplicar métodos tão esquemáticos.

Estes tipos de redução somente contribuíram para o preconceito de que existe uma uniformidade cultural do “africano”. Onde tudo pode ser colocado debaixo do mesmo saco. Ledo engando, as civilizações do continente possuem uma diversidade cultural e religiosa tão grande como qualquer outro. Busco nas palavras de Benjamim Ray um complemento para o que foi colocado.

A equivocada suposição acerca da uniformidade cultural africana foi originada com o comércio de escravos e com os poderes coloniais, que imaginavam a vasta área da África sub-saariana como um único país ocupado pelas mesmas pessoas. A percepção de uniformidade cultural juntou-se a noção sociopolítica de raça, desenvolvida durante o séc. XIX, ignorando as identidades linguísticas, culturais e étnicas que as sociedades africanas tinham desenvolvido por milhares de anos e que continuam a definir suas vidas culturais até os dias de hoje.
(Ray, 2000: 9)

Anderson Ribeiro Oliva finaliza seu texto dizendo que pelo fato de não existir nos moldes ocidentais a distinção entre o profano e o sagrado. Desta maneira as cosmologias africanas não podem ser vistas como um todo uniforme, “mas sim inseridas num grande contexto de diversidades de relações com o sagrado, crenças e práticas físicas e metafísicas. Não somente entre os grupos étnicos- linguísticos, sociedades e regiões, mas dentro destas próprias”.

Amarrando todas as ideias debatidas acima, vemos que os primeiros contatos comerciais entre os europeus e africanos foram marcados pela necessidade e urgência dos primeiros se adequarem e não o contrário como podemos ser levados a pensar. Acentuo o papel dos portugueses (já que os textos se focam nos contatos que este país fez) neste processo, que para conseguir a supremacia do tráfico negreiro, atividade comercial super-rentável na época, se adaptaram com grande eficácia aos costumes dos locais africanos que os proporcionaram grandes dividendos. Claro que deve ser deixado claro que houve um grande etnocentrismo nesta troca cultural, sempre os lusos se vendo como superiores. Porém não deve ser negado que a pequena nação europeia foi bem longe na submissão às regras locais. Para maior conhecimento desta maleabilidade lusa me dirijo para o capítulo I do livro “Casa Grande e Senzala”, Características gerais da colonização portuguesa do Brasil:

“A singular predisposição do português para a colonização híbrida
e escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado
étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África.
Nem intransigentemente de uma nem de outra, mas das duas. A
influência africana fervendo sob a europeia e dando um acre requeime
à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro
correndo por uma grande população brancarana quando não predominando
em regiões ainda hoje de gente escura; o ar da África, um ar
quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura
as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da
Igreja medieval; tirando os ossos ao cristianismo, ao feudalismo, à
arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim,
ao próprio caráter do povo. A Europa reinando mas sem governar;
governando antes a África.”
(Freyre, 1933; 33)

Claro que guardadas as devidas críticas que a obra de Gilberto Freyre tem recebido ultimamente, este é um perfil interessante das razões deles serem mais liberais que outros povos europeus.





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