Humberto
Mauro foi um dos diretores mais fascinantes que o cinema brasileiro teve.
Glauber Rocha fez uma definição muito boa do que representou o diretor. Em
entrevista ao documentário Mauro,
Humberto de David Neves diz que o mineiro é o fundador do estilo
cinematográfico brasileiro. Sendo o grande percursor do Cinema Novo e com uma
importância cultural à altura de um Heitor Villa-Lobos, um Guimarães Rosa ou um
Portinari. Apesar de algumas opiniões meio tresloucadas, Glauber tinha razão em
colocá-lo neste patamar. O mais incrível é que mesmo com todas estas qualidades
ele era um autêntico desconhecido da maior parte do público de sua época. Sua
carreira foi prejudicada por um preconceito que até hoje perdura contra o filme
nacional, classificado como inferior e popularesco. Além deste pesar, ainda
sofreu bastante com a até hoje problemática distribuição das obras nacionais
num mercado inundado por filmes estrangeiros. Somente na década de 60 passou a
ser mais respeitado com a redescoberta de seus filmes que sobraram,
infelizmente alguns se foram para sempre dado o descaso com a preservação das
primeiras gerações do cinema nacional. Pesquisadores, críticos e cineastas de
peso fizeram este resgate. Nomes como Alex Viany, David Neves e principalmente
Paulo Emilio Salles Gomes o deram o reconhecimento devido.
A
carreira de Mauro começou em 1925 com o curta Valadião, o cratera. Filmado com uma câmera Pathé-baby 9,5 mm foi o
primeiro contato com a arte de filmar. Seu interesse pela sétima arte começou
ao se envolver com eletrônicos, principalmente o rádio. Depois se interessou
pela fotografia. Daí para o cinema foi um pulo. Seu grande incentivador e
mestre nesta fase inicial foi Pedro Comello. Imigrante italiano, chegou em
Cataguases em 1914 e tinha um estúdio de fotografia. A amizade foi instantânea
e prolífica. Estava iniciado o que ficou conhecido como o Ciclo de Cataguases.
Depois
do curta citado, eles tentaram fazer um filme que se chamaria Os três irmãos. Com direção de Comello, o
projeto naufragou por conta da dificuldade em materializar o projeto. Daí
Humberto Mauro dirigiu seu primeiro longa. Na
primavera da vida foi considerado um êxito pois o filme de baixo orçamento
se pagou somente com exibições em Cataguases e região. Protagonizado por Eva
Nill, nome artístico de Eva Comello (filha de Pedro), e Bruno Mauro (irmão do
diretor) foi uma experiência que consolidou a escolha dele ser diretor. A trama
é basicamente Eva Nill interpretando uma moça simples, filha de um vigia
fiscal, que vive romance com um engenheiro e um contrabandista, atrapalhando o
trabalho e os planos de seu pai. Infelizmente o filme não se conservou para as
futuras gerações. Desta primeira fase, tanto esse quanto Valadião, o cratera se perderam para sempre. A noção de preservação
dos primeiros filmes no Brasil é um processo que veio somente depois. Processo
que se consolidou somente com a criação das cinematecas.
Com
o interesse cada vez maior dos dois amigos, a brincadeira começou a ganhar ares
mais profissionais. A criação da Phebo Sul America Film foi um marco. Com o
apoio de personalidades locais que toparam financiar o projeto, os filmes
começaram a ficar mais caros e bem realizados. Daí veio Thesouro Perdido em 1927. No livro História do Cinema Brasileiro de Fernão Ramos, em capítulo dedicado
ao ciclo de Cataguases diz sobre esta parceria que:
“O projeto é abandonado e, em seguida,
fundam a Phebo Sul America Film, que conta com o investimento de Homero Cortes
Domingues, dono das Casas Carcacenas, e Agenor de Barros, homem do café e da
Agência Buick. O primeiro filme da Phebo, projeto mais realista, é Na primavera da vida (1926), história e
direção de Humberto com o pseudônimo de Reynaldo Mazzei. A essa altura já havia
aprendido cinegrafia, roteiro e direção, tanto através dos ensinamentos do
mestre Comello, quanto de seu esforço de autodidata.”
(RAMOS, 1987. P. 85)
Antes
de entrar no filme em si é importante falar sobre a crise que aconteceu entre
Humberto Mauro e Eva Nill. Por conta de um gênio forte bateu de frente com o
diretor e saiu do projeto no começo das filmagens e foi substituída por Bebe
Mauro, esposa do diretor. Isto aconteceu pois ocorreu uma grande dificuldade em
arrumar uma substituta para Eva. O cinema era uma arte que não possuía a melhor
das reputações e desde os tempos do teatro, a atriz era vista pela sociedade
como um tipo de mulher fácil. Olhando as fotos de Eva que chegaram até os dias
de hoje vemos uma mulher misteriosa e com uma beleza arrebatadora. Paulo Emilio
Salles Gomes fez uma boa definição dos efeitos do fenômeno Eva Nill sobre as
plateias da época.
A
tese de doutorado que Paulo Emilio Salles Gomes defendeu e que virou livro é
uma referência obrigatória para quem quer adentrar no universo de Mauro. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte
conta com uma riqueza incrível de detalhes não só histórias do diretor, mas
também de todo o espírito do tempo da época. O foco é somente na primeira fase,
no que hoje é conhecido como Ciclo de Cataguases. Ele vai desde a história dos
pais de Mauro até a realização de Sangue
Mineiro (1929), o último filme do
ciclo. Os personagens do livro são encantadores. Se hoje fazer cinema no Brasil
é um calvário, imagine naquela época. Mas desta dificuldade surgiu um cenário
único no contexto da evolução do cinema mundial, realizações altamente pessoais
numa época que a sétima arte ainda estava se consolidando.
Daí
a importância do estudo de Paulo Emilio, até então Mauro foi uma figura meio
esquecida dos círculos cinematográficos. Apesar de alguns críticos falarem bem
de seus filmes, a maioria esmagadora era contra. Todo tipo de acusações que
além de revelar uma crítica de cinema em jornais ainda era feita por pessoas
que não tinham a sensibilidade adequada. A perseguição era tanta que Mauro
recebeu o jocoso apelido de Freud de Cascadura do jornalista Henrique de
Pongetti na ocasião do lançamento de Ganga
Bruta no Rio de Janeiro numa crítica para o periódico O Globo em 1933. O
comentário foi por conta de algumas referências à psicanálise feitas na
película.
“O último filme feito made in Cascadura, que
vimos na Cinelândia, tinha dois mil metros de celuloide, esticando uma bobagem
que caberia nas costas de um selo. O público riu do drama até onde pode e,
quando não podia mais, foi chorar pelo dinheiro da entrada na cama, que é lugar
quente… Pois bem: quando se referiam ao insucesso do filme em conversas com os
seus incorrigíveis perpetradores, eles diziam com um sorriso de vitória: “O
público não entendeu que o drama era freudiano… O nosso público nem sabe que é
Freud!...”
(Pongetti, Henrique. O Globo. Rio de
Janeiro, 2 de outubro de 1933)
A
História mostrou o tanto que os críticos estavam errados. O cinema americano
sempre foi muito forte no Brasil, principalmente depois que começou a 1ª Guerra
Mundial (1914-1918). Com a guerra na Europa a produção teve uma queda
acentuada, vazio que foi preenchido pelos filmes produzidos em sua maioria em
um lugar que viria a se tornar sinônimo do espetáculo cinematográfico,
Hollywood era o nome de uma cidade da Califórnia que teve seu potencial visto
por D. W. Griffith. Daí o fascínio de críticos com o cinema dos EUA, mas que no
fundo era um tipo de complexo de vira-latas em que para o filme ser bom tinha
que seguir as regras do que vem de fora.
Cinearte
Apesar
de ter tido uma grande importância como a conexão entre a produção brasileira
que praticamente não se comunicava além de sua região. A revista Cinearte, que circulou
de 1926 a 1942, foi uma grande propagadora da mentalidade de que o filme
nacional deveria passar longe de temas rurais, devendo retratar o glamour da
cidade grande. O que foi um baque para o cataguasense, pois ele tinha
claramente um grande apreço por temas interioranos. Os principais nomes da
revista eram Pedro Lima e Adhemar Gonzaga. Suas ideias hoje beiram à loucura
para os padrões atuais. Além do gosto pela alta sociedade, eram xenófobos e
racistas. Segue abaixo a crítica feita em 1927 para a edição de número 91.
Começava o filme
expondo uma porção de pretinhos tomando banhos
ou raspando as
canelas numa praia do Recife. Depois, apresentava o
centro comercial
da cidade, inteiramente às moscas, vazio, ostentando
apenas belos
edifícios. E o letreiro fazia então uma pilheria a esse
respeito. Em
seguida, surgiam outros aspectos apreciáveis e vinha então
o Rio de Janeiro.
(THE GIRL FROM RIO.
Cinearte, v.2, n.91, p.33, 23 nov. 1927)
Apesar
destes desvios ideológicos, a importância da revista para o cinema nacional foi
muito grande. Lima e Gonzava foram grandes conselheiros e incentivadores da
produção nacional. Nem toda ela, a aversão que eles tinham pelos filmes
naturais (documentários) era notória. Para a revista o importante eram os
filmes de ficção, chamados na época de pousados. Apesar de podarem o talento de
Mauro foram também grandes incentivadores, dando a ele a medalha de melhor
filme brasileiro de 1927. E não podemos esquecer que foi Adhemar Gonzaga que
convidou o mineiro para trabalhar no Rio de Janeiro no começo da década de 30 no
estúdio que havia acabado de inaugurar, a Cinédia.
Um
mineiro na capital
Esta
foi uma importante fase de sua carreira. A mudança para a capital o trouxe um
pouco de estabilidade financeira e a possibilidade de trabalhar com sua grande
paixão com mais recursos e estrutura. Lá realiza como diretor Lábios sem beijos (1930), A voz do carnaval (1933) e o clássico Ganga Bruta (1933). Além de várias
outras contribuições em outras áreas como direção de fotografia e iluminação. Depois
de desentendimento com Gonzaga vai trabalhar no estúdio de sua amiga e atriz de
filmes anteriores Carmen Santos. No Brasil Vita Filmes faz dois filmes: Favela dos meus amores (1935) e Cidade Mulher (1936). Obras que
infelizmente se perderam num incêndio, sendo inacessíveis para as gerações
atuais.
1937
inicia uma nova fase em sua carreira. Com o apoio de Edgar Roquete-Pinto começa
a trabalhar no recém fundado Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE).
Onde volta para sua essência de homem do campo dirigindo documentários de todos
os tipos com foco na educação do povo. Obras-primas como a série Brasilianas mostram costumes e músicas
de pessoas do interior do país.
Última
direção
Em
1952 realiza aquele que será seu último filme. O canto da saudade é gravado
no estúdio que cria em Vargem Grande, pequena cidade mineira onde havia nascido
e morava antes de ir para Cataguases. Com mais idade e tendo controle de sua
obra vai mostrar as coisas que gostava tanto. A natureza e a cultura do
interior sempre tiveram alta consideração por Mauro. Chegando até a dizer em
algumas entrevistas que o cinema era como a cachoeira. É um grande filme, cenas
antológicas como um sonho e o próprio Mauro como ator dão ao filme um alto grau
artístico. O livro Humberto Mauro – Sua
vida/ sua arte/ sua trajetória no cinema com a coordenação editorial de
Alex Viany, lançado em 1978. Traz uma interessante matéria que Rogério
Sganzerla escreveu para o Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo
em 6 de fevereiro de 1965.
“A
câmera não coopera na interpretação dos atores; a montagem possui uma única
função, provocar um humor regional-mineiro; não há intrigas articuladas. Ao
contrário de Ganga Bruta, não possui
ritmo compassado: é uma fita que flui por si mesma, como no documentário ou
jornal de atualidades. Um filme que se cria. Talvez por ser o displicente e
superior canto de cisne de Mauro na longa-metragem.”
(VIANY.
1978. P. 86)
Legado
Num
país que sofre de esquecimento crônico como é o caso do Brasil a obra de
Humberto Mauro ainda não tem a abrangência de estudos que um homem da sua
altura merece. A situação já foi pior, porém o resgate da obra do resgate do
mineiro deu uma arrefecida ultimamente. Sem a mesma força de obras lançadas nos
anos 70 e 80. Como é o caso do livro de Paulo Emilio e obras de coletânea
reunindo matérias sobre ele. Para não ser injusto, existe uma boa obra atual
sobre a fase de Mauro quando fez obras sob encomenda do governo Getúlio Vargas.
O pesquisador da Universidade de São Paulo, Eduardo Morettin, escreveu a
respeito da trajetória da produção dos filmes Descobrimento do Brasil e Os Bandeirantes, produções feitas sob
encomenda do governo Getúlio Vargas. Por intermédio dos filmes ele mergulha nas
dificuldades da produção brasileira de filmes nas décadas de 1930 e 1940, a possível
influência política e ideológica do pensamento hegemônico e seus efeitos sobre
o diretor. Também vai para a importância do cinema com temas históricos para
consolidar a história oficial do Brasil e de São Paulo.
Mauro
ficou para a História como um pioneiro que conseguiu transmitir seus
sentimentos em uma arte que apenas estava engatinhando no Brasil e no mundo.
Sua originalidade durou mais que os ataques que sofreu. O que ficou foi a ideia
de um talento extraordinário que ainda consegue destilar sua inteligência para
as plateias de hoje. Não um Freud de Cascadura. E sim, um dos grandes
interpretes da alma brasileira. Ele morre em 1983, mas sua obra vai perdurar e influenciará
muitos futuros estudos.